terça-feira, 31 de janeiro de 2017

DESDE AQUELE QUARTO ANDAR ONDE NASCEU


Não conheço de António Gedeão, nenhum poema dedicado ao mar. Alusões variadas, chamamento de ondas, de marés, de espumas e de galés, combinações de palavras alusivas ao mar, insinuações marítimas, expressões de água salgada, tudo isso aparece na sua poesia. Mas aquela prontidão, aquele arroubo de mar alto, essa invocação quase divina do mar, do mar, do mar, não aprece nunca. A sua visão do grande oceano era nele, a configuração de um entendimento antropológico e físico.
O Poema da Malta da Naus é o exemplo inequívoco desse entendimento. É um poema extraordinário que configura uma maneira de ser portuguesa que se manifestou num período áureo da nossa História.
É que a atração pelo mar é característica dos povos que vivem perto dele e que não são assim tantos. Os homens das planícies, das montanhas, das savanas, dos desertos, têm outros tipos de relacionamento com o meio envolvente porventura tão apaixonado e aventureiro comos os povos que vivem com o mar como horizonte.
Outros sentimentos. Outros romantismos.
Aos rios, sim,  especialmente ao Tejo, esse rio estranhamente metalino que permaneceu recatado, que manteve a serenidade líquida por toda a sua vida, rio que visitou e sempre admirou e o encantou desde a infância, desde aquele quarto andar onde nasceu a olhar para ele, a seguir-lhe a ligeira ondulação e a conhecê-lo por inteiro como só o olhar de uma criança consegue vislumbrar, esse sim, essa água aprece em muitos poemas, esse rio é mencionado constantemente.

Cristina Carvalho em Rómulo de Carvalho/António Gedeão. Príncipe Perfeito

Poema da Malta das Naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
Pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão direita benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
Do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.


Legenda;: capa do EP «Dulcineia» de Manuel Freire onde se encontra o Poema da Malta das Naus

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