terça-feira, 22 de abril de 2025

MÚSICA PELA MANHÃ


Deve-se a Manuel Freire, em tempos de ditadura, com um poema, uma canção, popularizar um grande poeta português: António Gedeão, o poema é a Pedra Filosofal.

O mesmo Manuel Freire, nos mesmos tempos de ditadura, transformou poemas de poetas portugueses, em gritos claros de luta e de esperança.

Num país cinzento, debaixo de uma ditadura que tudo fez para que a esperança do povo não pudesse soltar amarras, cerceando a vontade de quem se sentiu escravo e pela libertação fez luta diária, houve quem não respeitasse mistérios nem segredos.

Muitos, durante essa luta, acabaram por morrer, não souberam da cor da liberdade, mas uma outra canção lembra: até mortos vão a nosso lado.

Lidos em 1966, a esmagadora maioria dos Poemas Possíveis estão assinalados a lápis.

Naturalmente, um desses poemas é Ouvindo Beethoven.

Uma boa dezena de anos antes de Abril, Saramago, esperançadamente, sabe que, como disse Jorge de Sena, não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade.

Ouvindo Beethoven, José Saramago sabia que, num, num qualquer mês, de um qualquer ano, chegaria o Dia das Surpresas.

Deste poema, em 1973, Manuel Freire fez canção e assim alargou os horizontes da mensagem:

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

A 24 de Dezembro de 1973, António José Saraiva está em Paris a gozar 10 dias de férias da Universidade holandesa onde colabora. Escreve a Óscar Lopes. Quase em findar de carta, desabafa sobre o que vai acontecendo no mundo e conclui que «a chamada civilização ocidental chegou ao fim, e já perdeu a alma. Mas não apareceu outra que a substitua e por isso ela continua de pé e continuará, como um cadáver adiado.»

E expressa os seus desejos para esse ano:

«Que este 1974, em que ambos começamos a aproximar-nos dos 60, seja o menos mau possível.»

 De facto, os votos de Saraiva ultrapassaram as suas prováveis débeis expectativas.

Por Abril desse ano aconteceu o dia de todas as surpresas.

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