Deve-se a Manuel
Freire, em tempos de ditadura, com um poema, uma canção, popularizar um
grande poeta português: António Gedeão, o poema é a Pedra Filosofal.
O mesmo Manuel Freire, nos mesmos tempos de ditadura, transformou poemas de poetas portugueses, em gritos claros de luta e de esperança.
Num país
cinzento, debaixo de uma ditadura que tudo fez para que a esperança do povo não
pudesse soltar amarras, cerceando a vontade de quem se sentiu escravo e pela
libertação fez luta diária, houve quem não respeitasse mistérios nem segredos.
Muitos, durante
essa luta, acabaram por morrer, não souberam da cor da liberdade, mas uma outra
canção lembra: até mortos vão a nosso lado.
Lidos em 1966, a
esmagadora maioria dos Poemas
Possíveis estão assinalados a lápis.
Naturalmente, um
desses poemas é Ouvindo
Beethoven.
Uma boa dezena
de anos antes de Abril, Saramago, esperançadamente, sabe que, como disse Jorge
de Sena, não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade.
Ouvindo Beethoven, José Saramago sabia que, num, num qualquer mês, de um qualquer ano, chegaria o Dia das Surpresas.
Deste poema, em 1973, Manuel Freire fez canção e assim alargou os horizontes da mensagem:
Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.
A 24 de Dezembro
de 1973, António José Saraiva está em Paris a gozar 10 dias de férias da
Universidade holandesa onde colabora. Escreve a Óscar Lopes. Quase em findar de
carta, desabafa sobre o que vai acontecendo no mundo e conclui que «a
chamada civilização ocidental chegou ao fim, e já perdeu a alma. Mas não
apareceu outra que a substitua e por isso ela continua de pé e continuará, como
um cadáver adiado.»
E expressa os seus desejos para esse ano:
«Que este 1974, em que ambos começamos a aproximar-nos
dos 60, seja o menos mau possível.»
De facto, os votos de Saraiva ultrapassaram as suas prováveis débeis expectativas.
Por Abril desse ano aconteceu o dia de todas as surpresas.

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