quarta-feira, 30 de abril de 2025

(SJ-06)

as formas de conhecer-te são só duas

ou três: esta é q eu demora mais tempo.

a chuva parou e continuamos distraídos neste

amor de cabotagem, nunca demasiado

longe ou perto da carne e dos órgãos que uma

abóboda de ossos protege. Cumprimos

a liturgia das horas, repetida sem convicção ou

eficácia, e por vezes as palavras começam

a fazer sentido, como os gestos com que

te aproximo de mim, com uma só mão

e algum sono. uma navegação lenta,

familiar e confortável, porque

essa é a melhor forma de te conhecer

os dedos e o modo como os usas

para fazer tranças às horas, como quem

tece cabelos ou desfia um rosário

sem murmúrios, apenas a técnica de rodar

terços e mistérios no fundo da mão

para entreter os pretendentes e

esperar que eu regresse das longas

viagens – dez anos de cada vez –

em que me ausento sem sair de casa.

esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs

vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,

com as quais tenciono adormecer-te (como

na história que contamos todas as noites), porque

é essa a única forma de te conhecer

os medos e interpretar os sonhos, escrever

ao teu lado, enquanto dormes, a lista

das tarefas diárias com que nos ocupamos a

matar o tempo.


Tiago Araújo em  Resumo: a poesia em 2010 

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