quarta-feira, 30 de abril de 2025

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Continuamos a palmilhar os passos que Miguel Real, no prefácio a As 7 Vidas de José Saramago, vai fazendo dos dias, dos anos do autor.

Lá atrás ficámos no íntimo desejo de José: «Idealizava ser escritor desde a adolescência — assim o dissera aos amigos, quando opinavam sobre o destino de adultos de cada um —, mas só tem o seu primeiro livro aos 12 anos.»

«Na juventude, pede um empréstimo de 300 escudos para comprar livros que, desprovido de estante em casa e de dinheiro para a comprar, acomodara num armário da cozinha. Consegue passar a empregado de escritório (e assim se dá a conquista da primeira muralha de Josephville: de operário a pequeno-burguês dos serviços) e casa. Continuando a ler, de forma autodidata, fazendo-se acompanhar sempre de um ou dois livros na mão, publica um romance falhado aos 25 anos e escreve um outro, que já não consegue publicar, vivendo com angústia os fracassos editoriais. Com mais de 30 anos, desprovido de contactos nos meios intelectuais e universitários, conhece, num café da Baixa de Lisboa, um diretor literário que o convida a integrar o setor de produção de uma editora, o que lhe muda radicalmente a vida (segunda muralha: o escritor falhado e leitor torna-se editor, convivendo com escritores portugueses de nomeada) — por lá trabalha durante cerca de 12 anos como «serviçal» de intelectuais, no papel de intermediário entre os autores e os tipógrafos; ele é o funcionário que põe os livros na rua. Assim vai granjeando contactos, sobre os quais — elo mais fraco — se sente honrado. Edita um livro de poesia e depois um outro, ambos totalmente estranhos à atmosfera poética da década, faz traduções do francês, escreve crónicas para jornais e crítica literária para uma grande revista de oposição política, alcançando, então, alguma notoriedade entre o meio jornalístico à época, repleto de escritores que classifica de «corporação literária» — de que se sente alheado apesar de fazer parte dela, profissionalmente (terceira muralha: a conquista de um lugar entre a intelectualidade dominante). Revoltado contra a cidade totalitária, que não lhe reconhece valor, contra a guerra colonial, contra a prisão de amigos e a opressão política do regime, adere ao Partido Comunista Português (PCP), pressupondo que a sua cidade ideal, Josephville, só poderia ser conquistada politicamente. Dá-se uma revolução na cidade — Saramago assume a direção de um dos maiores jornais e aí escreve como um comunista puro, sem jogos diplomáticos de poder (quarta muralha: a tentativa de construção política de Josephfille, uma sociedade sem classes. A revolução sucumbe e ele fica desempregado, não recebendo sequer o apoio dos seus camaradas, que o presumem excessivamente radical. A nova classe política afasta-se de quem tanto se comprometeu com a revolução — Mário Soares, o principal dirigente político do Partido Socialista, representa, então, para Saramago, o seu principal inimigo. Regressa à tradução, donde tira o sustento, escreve contos e um «ensaio de romance» de grande qualidade, de acordo com o espírito literário da época, que aponta para a desconstrução das categorias clássicas do romance. Visto que poucos leitores cativa, como no caso do livro anterior, só lhe resta experimentar aquilo que desde a adolescência desejara ser, o tudo ou o nada: isola-se no Alentejo, a região mais pobre de Portugal, e vive entre os camponeses, ouve as suas histórias, os seus anseios familiares, os desejos sociais, as histórias encantadas. Regressado a Lisboa, começa a escrever novo romance, retratando-lhes a oralidade, as histórias de humilhação e miséria, as aspirações centenárias; escreve como os camponeses falam, desprezando as indicações da gramática, da arte tradicional de bem escrever um romance. O livro não é aceite por duas editoras, que, com a fama de comunista do autor, nem o devem ter lido, mas encontra acolhimento numa casa editorial de esquerda, recentemente criada, e provoca o espanto dos leitores — não pelo tema, suspeito, inconveniente (a necessidade de uma reforma agrária), mas pelo tom, pelo estilo, pelas audácias morfológicas e sintáticas.»


Legenda: a ilustração deste e próximos Sublinhados Saramaguianos será feita com recortes dos Dossiers da Biblioteca da Casa sobre José Saramago.

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