terça-feira, 22 de abril de 2025

OS MORTOS

Eu sei, é preciso esquecer,

desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,

os nossos mortos anseiam por morrer

e só a nossa dor pode matá-los.

 

Tanta memória! O frenesim

escuro das suas palavras comendo-me a boca,

a minha voz numerosa e rouca

de todos eles desprendendo-se de mim.

 

Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?

Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde

no que pode ser dito. Onde estavas

quando chamei por ti, literalidade?

 

E todavia em certos dias materiais

quase posso tocar os meus sentidos,

tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,

os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.

 

Manuel António Pina de Os Livros em Poesia, Saudade da Prosa

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