segunda-feira, 21 de abril de 2025

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS

É José Saramago quem o lembra no seu Viagem a Portugal:

«Mal vai à obra se lhe requerem prefácio que a explique, mal vai ao prefácio se presume de tanto. Acordemos, então, que não é prefácio isto, mas aviso simples ou prevenção, como aquele recado derradeiro que o viajante, já no limiar da porta, já postos os olhos no horizonte próximo, ainda deixa a quem lhe ficou a cuidar das flores. Diferença, se a há, é não ser o aviso último, mas primeiro. E não haverá outro.»

A lembrança prefacial vem a propósito do livro de Miguel Real e Filomena Cabral As 7 Vidas de José Saramago. Os autores entenderam que um livro de 747 páginas sobre a obra e a vida do nosso Prémio Nobel, necessitaria de um prefácio e não o fizeram por menos: tem 53 páginas.

Que diria Saramago?

Durante dias, semanas, talvez meses, andarei às voltas com este livro. Do que achar interessante, farei Sublinhado Saramaguiano.

E começarei pelo prefácio, mais concretamente com a epígrafe que os autores escolheram:

Uma biografia verdadeira é aquela que narra menos os factos acidentais da vida de um homem e mais o sentido da sua existência.

LEÔNCIO, O GREGO, O Livro das Biografias

 «Escrever uma biografia não é fácil. Escrever uma biografia de um homem controverso, crítico, denunciante e acusador das sem-razões por que a História tem sido construída — e das iniquidades que se espalham hoje na paisagem do mundo — pressupomos ser menos fácil ainda. Nenhuma biografia é escrita para agradar ou desagradar ao leitor; esta não pretende agradar aos que se revêm nas palavras de Saramago nem aos que condenam a sua figura. Uma biografia é escrita segundo a consciência do seu autor: entre milhares de fontes e de factos, o autor seleciona os que considera terem sido marcantes na existência do biografado, desenhando- -lhe o arco da vida entre o nascimento e a morte. A existência de Saramago foi construída segundo dois motes maiores: a Literatura e a Injustiça. O primeiro exprime-se na criação estética, o segundo, na denúncia das desigualdades sociais e das instituições e personalidades que lhes dão cobertura. Eis o sentido de As 7 Vidas de Saramago — duas colunas que permanentemente se elevam, paralelas, e, entre elas, os factos que as sustentam, vida a vida, das sete que viveu. De facto, se a continuidade da existência da vida de Saramago é estabelecida pela Literatura e pela denúncia das Injustiças, os momentos de rutura são dados pelo modo como ambas são praticadas período a período. Cruzámos e sintetizámos estas duas inspirações permanentes da vida de Saramago na palavra Josephville, «a cidade do José», criada pelo autor. 1998 é o ano do Prémio Nobel, a conquista da derradeira muralha de Josephville, a cidade ideal de José Saramago referida na crónica de jornal «A Cidade» (que abre o livro Deste Mundo e do Outro),1 contraposta à cidade real de que desde menino se sentia expulso, ou, pelo menos, excluído. Filho de um casal rural sem terra migrado para a cidade — uma mãe analfabeta e lavadeira de escadas e um pai polícia de bairros pobres de Lisboa —, sente o peso da discriminação, tem de viver em casas partilhadas ao longo da infância de interromper os estudos no liceu, é transferido para uma escola técnica por carência de recursos da família, conclui um curso de Serralharia Mecânica e torna-se serralheiro do, então, principal hospital da cidade, enquanto frequentava, à noite, a única biblioteca aberta até às 23 horas. Idealizava ser escritor desde a adolescência — assim o dissera aos amigos, quando opinavam sobre o destino de adultos de cada um —, mas só tem o seu primeiro livro aos 12 anos.»

Legenda: Contra capa de As 7 Vidas de José Saramago.

2 comentários:

Seve disse...

Que livro excelente!
Anotei da pág. 37:
-Nunca houvera um narrador desta natureza e o seu estatuto literário torna-se assim heterodoxo (oposição aos padrões tradicionalmente estabelecidos)-

Sammy, o paquete disse...

Também está por mim assinalado e, um pouco mais abaixo dessa página que o Seve citou: «Saramago utiliza as suas obras, as declarações, as entrevistas, as conferências, em suma, toda a sua vida desde a década de 80, para criticar e denunciar a injustiça».
Estas 7 Vidas de Saramago é mesmo um livro notável. Foi uma oferta do meu filho no Natal de 2023. Acabei de o ler em Maio de 2024. Mas voltei ao local do crime e entendi fazer sublinhados. Um livro nunca está completamente lido e percebido, principalmente se for um livro de José Saramago, ou sobre José Saramago.