Em
pleno Apagão, o voltar ao Rádio de Pilhas, ouvir os gritos de alegria na rua
quando a luz começou a aparecer, os que chegaram a lançar foguetes, o
açambarcamento nos supermercados, as notícias falsas que começaram a ser
lançadas para o ar pelo ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Castro
Almeida, a admitir a hipótese de um ciberataque, a dependência das nossas vidas
face aos telemóveis que aconteceu sem termos dado por isso, ou a frase que um
dia ouviu de quem não tem telemóvel e nisso reside a relativa felicidade em que
vive…
«O aparelho de rádio tinha um caixilho de madeira e a face era como uma máscara
cega, olhos e boca em panos. Havia a mesma melancolia nos brados dos relatos,
nas sinfonias, nas novenas de Fátima e na voz quebrada dos discursos de estado.
Como se o espírito nos desse sinal do holocausto, alheadas sobre o enlace das
silhuetas: estarmos vedadas de tanta finura, veemência ou persuasão. Ainda hoje
me assola a tristeza desses sons que não escuto e me temo de um rádio aberto em
surdina à minha beira. Vivíamos sob esse rumor a que só mais tardiamente demos
sentido, quando o hóquei patinado se tornou uma paixão cívica.»
Maria Velho da Costa em Missa in Albis
Conheci um guitarrista que dizia «a minha amiga
rádio». Sentia um parentesco menos com a música do que com a voz da rádio. A
sua qualidade sintética. A sua voz única, distinta das vozes que a atravessam.
A sua capacidade de transmitir a ilusão de gente a grande distância. Dormia com
a rádio. Falava para a rádio. Discordava da rádio. Acreditava numa Terra
Longínqua da rádio da Rádio. Como achava que nunca encontraria esta terra,
reconciliou-se consigo mesmo a ouvir a rádio. Acreditava que tinha sido banido
da Terra da Rádio e condenado a errar eternamente pelas ondas sonoras, ansiando
por um posto mágico que o devolvesse à sua herança há muito perdida.
Sam Shepard em Crónicas
Americanas
Andava sempre à pesca de qualquer coisa na rádio. A
par dos comboios e dos sinos, a rádio fazia parte da banda sonora da minha
vida.
Bob Dylan em Crónicas
Já não estou muito capaz de trabalhar, porque a memória, a vista, tudo isso inibe um tipo. Já não leio os jornais, não consigo. A minha ligação com o mundo é a rádio.
Luiz Pacheco
«Ouça, importa-se de baixar mais o rádio?»
«Ora essa. Desculpe, tenho a mania de o pôr muito
alto.»
«Como os taberneiros.»
«Ou como os apreciadores de jazz. Como as prostitutas baratas, se quiser. O rádio, Guida, é um vício de solitários.»
José Cardoso Pires em O Anjo Ancorado
Durante o dia, a telefonia estava ligada para o emissor clássico da Emissora Nacional. Apenas ao serão havia uma interrupção do fluxo da grande música quando a voz do meu avô ordenava: “Meninas vamos ouvir a BBC”. Mudava-se de onda durante os minutos com as notícias de Londres lidas pelo Ferando Pessa ou pelo Augusto da Silva, sobre o desenrolar da guerra. “Aqui Londres, Estação da BBC na banda dos 41 e 49 metros”.
António Cartaxo
em Quase Verdade Como São Memórias

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