terça-feira, 29 de abril de 2025

QUOTIDIANOS


Em pleno Apagão, o voltar ao Rádio de Pilhas, ouvir os gritos de alegria na rua quando a luz começou a aparecer, os que chegaram a lançar foguetes, o açambarcamento nos supermercados, as notícias falsas que começaram a ser lançadas para o ar pelo ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Castro Almeida, a admitir a hipótese de um ciberataque, a dependência das nossas vidas face aos telemóveis que aconteceu sem termos dado por isso, ou a frase que um dia ouviu de quem não tem telemóvel e nisso reside a relativa felicidade em que vive…


«O aparelho de rádio tinha um caixilho de madeira e a face era como uma máscara cega, olhos e boca em panos. Havia a mesma melancolia nos brados dos relatos, nas sinfonias, nas novenas de Fátima e na voz quebrada dos discursos de estado. Como se o espírito nos desse sinal do holocausto, alheadas sobre o enlace das silhuetas: estarmos vedadas de tanta finura, veemência ou persuasão. Ainda hoje me assola a tristeza desses sons que não escuto e me temo de um rádio aberto em surdina à minha beira. Vivíamos sob esse rumor a que só mais tardiamente demos sentido, quando o hóquei patinado se tornou uma paixão cívica.»

Maria Velho da Costa em Missa in Albis

Conheci um guitarrista que dizia «a minha amiga rádio». Sentia um parentesco menos com a música do que com a voz da rádio. A sua qualidade sintética. A sua voz única, distinta das vozes que a atravessam. A sua capacidade de transmitir a ilusão de gente a grande distância. Dormia com a rádio. Falava para a rádio. Discordava da rádio. Acreditava numa Terra Longínqua da rádio da Rádio. Como achava que nunca encontraria esta terra, reconciliou-se consigo mesmo a ouvir a rádio. Acreditava que tinha sido banido da Terra da Rádio e condenado a errar eternamente pelas ondas sonoras, ansiando por um posto mágico que o devolvesse à sua herança há muito perdida.

Sam Shepard em Crónicas Americanas

Andava sempre à pesca de qualquer coisa na rádio. A par dos comboios e dos sinos, a rádio fazia parte da banda sonora da minha vida.

 

Bob Dylan em Crónicas 

Já não estou muito capaz de trabalhar, porque a memória, a vista, tudo isso inibe um tipo. Já não leio os jornais, não consigo. A minha ligação com o mundo é a rádio.

Luiz Pacheco

«Ouça, importa-se de baixar mais o rádio?»

«Ora essa. Desculpe, tenho a mania de o pôr muito alto.»

«Como os taberneiros.»

«Ou como os apreciadores de jazz. Como as prostitutas baratas, se quiser. O rádio, Guida, é um vício de solitários.»

José Cardoso Pires em O Anjo Ancorado

Durante o dia, a telefonia estava ligada para o emissor clássico da Emissora Nacional. Apenas ao serão havia uma interrupção do fluxo da grande música quando a voz do meu avô ordenava: “Meninas vamos ouvir a BBC”. Mudava-se de onda durante os minutos com as notícias de Londres lidas pelo Ferando Pessa ou pelo Augusto da Silva, sobre o desenrolar da guerra. “Aqui Londres, Estação da BBC na banda dos 41 e 49 metros”.

António Cartaxo em Quase Verdade Como São Memórias

Sem comentários: