sexta-feira, 18 de abril de 2025

MÚSICA PELA MANHÃ


 Tempo de silêncio, quase trevas, esperando a alegria de uma grande Aleluia.

Música e Poesia. A Música de Mozart, a Poesia de Jorge de Sena.

Tudo se cala. Tudo há-de tornar-se num enorme Grito, enquanto ouvimos «Lacrimosa» do «Requiem» de Mozart.

 

«REQUIEM» DE MOZART

 

                     I

Ouço-te, ó música, subir aguda

à convergente solidão gelada.

Ouço-te, ó música, chegar desnuda

ao vácuo centro, aonde, sustentada

e da esférica treva rodeada,

tu resplandeces e cintilas muda

como o silente gesto, a mão espalmada

por sobre a solidão que amante exsuda

e lacrimosa escorre pelo espaço

além de que só luz grita o pavor.

Ouço-te lá pousada, equidistante

desse clarão cuja doçura é de aço

como do frágil mas potente amor

que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

 

 

                         II

 

Ó música da morte, ó vozes tantas

e tão agudas, que o estertor se cala.

Ó música da carne amargurada

de tanto ter perdido que ora esquece.

Ó música da morte, ah quantas, quantas

mortes gritaram no que em ti não fala.

Ó música da mente espedaçada

de tanto ter sonhado o que entretece,

sem cor e sem sentido, no fervor

de sublimar-se nesse além que és tu.

Ó vida feita uma detida morte.

Ó morte feita um inocente amor.

Amor que as asas sobre o corpo nu

fecha tranquilas no possuir da sorte.

 

                         III


Além do falso ou verdadeiro, além

do abstracto e do concreto, além da forma

e do conceito, além do que transforma

contrários pares noutros par’s também,

além do que recorre

ou nunca vem

ao que se pensa ou sente, além da norma

em que o não-ser se humilha e se conforma,

além do possuir-se, e para além

dessa certeza que outro ritmo dá

àquele de que as palavras têm sentido:

lá onde ouvir e não-ouvir se igualam

na mesma imagem virtual

do na-

da – é que tu vais, ó música, partido

o nó dos tempos que por si se calam.

 

                       IV


Tudo se cala em ti como na vida.

tudo palpita e flui como no leito

em que se morre ou se ama, já desfeito

o abraço do momento em que sustida

a sensação da posse conseguida,

a carne pára a ejacular-se atenta.

Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta

Esta glória de existir, trazida

a cada instante só do instante ser-se,

reflui em ti, liberto, puro, aflante, certeza e segurança de conter-se

na criação virtual o renascer-se

agora e sempre pelo tempo adiante,

mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se

deste possível é a paz do amante

 

Jorge de Sena em Arte de Música


Legenda: fotografia de Rui Ornelas

1 comentário:

Rui Ornelas disse...

Mozart não terminou o Requiem porque morreu em 5 de dezembro de 1791, antes de conseguir completá-lo. Estava gravemente doente nos últimos meses de vida e continuou a trabalhar na obra até muito perto da morte. Chegou a compor parte da introdução (Introitus) e deixou esboços para outras secções, como o Kyrie, Dies Irae e o início da Lacrimosa. A partir do nono compasso da Lacrimosa, a obra teve de ser completada pelo seu discípulo Franz Xaver Süssmayr
Após a morte de Mozart, Süssmayr foi escolhido para terminar o Requiem, em parte por sua proximidade com o compositor e porque já estava envolvido no projeto. Ele usou os esboços deixados por Mozart e completou as partes em falta, incluindo a Sanctus, Benedictus e Agnus Dei.