segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

CANÇÃO MUTILADA


A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de miragens tentadoras
Enquanto o Sol,
Nos últimos alentos,
Se prende aos galhos de um arbusto
Que, ressequido, à beira de uma ermida,
Parece o próprio símbolo da Vida.

De enxada ao ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as pedras dos caminhos
- Como bandeiras humanas
Movidas pelo infortúnio,
Sem alegria, sórdidos, curvados,
Mas enormes no seu frémito de luta!

Ah!, nem a Morte quer os homens
Quando eles são desgraçados!

As estrelas lá, no alto,
Riscam cintilantes brilhos.

E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!

A miséria
Quando atola
O homem nos seus negros labirintos,
Dá-lhe, também, a loucura
Dos mais trágicos instintos…

Agora, neste momento,
A noite –
É a imensa realidade…

E eu julgo ver a justiça
Afundar-se na penumbra
Da sua inútil verdade.

António Botto

Legenda: retrato de António Botto por Almada Negreiros

Sem comentários: