sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


A Matiné das Duas

Na penumbra da pequena sala talvez o milagre
fosse um gato preto que miasse
ou uma mulher loura
que cantasse
uns blues vagamente sinceros
e se decidisse depois por um streap-tease de músculos
hermafroditas.
Mas tudo parece de cartão.
Ver um filme às duas em ponto da tarde
é como entrar
num drama de papéis higiénicos
para doentes do sido.

Quem pode habitar este pulmão
sem ar
e ouvir saltar a tosse
como rãs da secura para o veneno do mundo
em celuloide?

Não sentimos sequer uma perna avançar
sonâmbula,
dormente pelas agulhas do desejo
ou o olhar aceso no escuro
dum rosto
que o desespero
transforma numa visão celeste,
quase inebriada.

É o tempo do limbo das lamas solitárias,
sentadas, em princípio da tarde
de má vida,
p tempo dos animais quietos, subterrâneos,
à espera.
Depois virá correndo, veloz, essa inocente droga
que te leva a sonhar
com um suicídio discreto,
de veludo puído,
descoberto duas horas depois
ao reacender das luzes,
pelos outros quatro ou cinco
que continuam vivos
como tu.

Armando Silva Carvalho em Lisboas

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