-Trouxe-te de Santiago
uma prenda muito especial. 0 «Hino oficial dos carteiros».
Juntamente com
estas palavras, a música de Mister Postman pelos Beatles expandiu-se pela sala desestabilizando as carrancas de
proa, revirando os veleiros dentro das garrafas, fazendo ranger os dentes das
máscaras africanas, despetrificando os tijolos, estriando a madeira, amotinando
os rendilhados das cadeiras artesanais, ressuscitando os amigos mortos
inscritos nas vigas sob o tecto, fazendo fumegar os cachimbos há muito tempo
apagados, tocar viola às barrigudas cerâmicas de Quinchamali, emanar perfumes
às cocotes da Belle Époque que forravam as paredes, galopar o cavalo azul, e
apitar a grande e vetusta locomotiva sacada a um poema de Whitman.
E quando o poeta lhe
pôs nas mãos a capa do disco nos braços, como se lhe confiasse a custódia de um
recém-nascido, e começou a dançar agitando os seus lentos braços de pelicano
tal como os despenteados campeões dos bailes de bairro, marcando o ritmo com
aquelas pernas que frequentaram a tepidez das coxas de amantes exóticas ou aldeãs
e que pisaram todos os caminhos possíveis da terra e os inventados pela sua própria prosápia,
dulcificando as pancadas da bateria com a trabalhosa mas decantada ourivesaria
dos anos, Mário soube que vivia agora um sonho: eram os prolegómenos de um
anjo, a promessa de uma glória próxima, o ritual de uma anunciação que traria
aos seus braços e aos seus lábios salgados e sedentos a buliçosa saliva da
amada. Um anjinho de túnica em chamas – com a doçura e parcimónia do poeta –
garantia-lhe umas rápidas núpcias. O seu rosto engalanou-se com essa fresca alegria,
e o esquivo sorriso reapareceu com a simplicidade de um pão sobra a mesa
quotidiana. «Se um dia morrer – disse para consigo, - quero que o céu seja como
este instante.»
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