quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O HINO OFICIAL DOS CARTEIROS


-Trouxe-te de Santiago uma prenda muito especial. 0 «Hino oficial dos carteiros».
Juntamente com estas palavras, a música de Mister Postman pelos Beatles expandiu-se pela sala desestabilizando as carrancas de proa, revirando os veleiros dentro das garrafas, fazendo ranger os dentes das máscaras africanas, despetrificando os tijolos, estriando a madeira, amotinando os rendilhados das cadeiras artesanais, ressuscitando os amigos mortos inscritos nas vigas sob o tecto, fazendo fumegar os cachimbos há muito tempo apagados, tocar viola às barrigudas cerâmicas de Quinchamali, emanar perfumes às cocotes da Belle Époque que forravam as paredes, galopar o cavalo azul, e apitar a grande e vetusta locomotiva sacada a um poema de Whitman.
E quando o poeta lhe pôs nas mãos a capa do disco nos braços, como se lhe confiasse a custódia de um recém-nascido, e começou a dançar agitando os seus lentos braços de pelicano tal como os despenteados campeões dos bailes de bairro, marcando o ritmo com aquelas pernas que frequentaram a tepidez das coxas de amantes exóticas ou aldeãs e que pisaram todos os caminhos possíveis da terra e  os inventados pela sua própria prosápia, dulcificando as pancadas da bateria com a trabalhosa mas decantada ourivesaria dos anos, Mário soube que vivia agora um sonho: eram os prolegómenos de um anjo, a promessa de uma glória próxima, o ritual de uma anunciação que traria aos seus braços e aos seus lábios salgados e sedentos a buliçosa saliva da amada. Um anjinho de túnica em chamas – com a doçura e parcimónia do poeta – garantia-lhe umas rápidas núpcias. O seu rosto engalanou-se com essa fresca alegria, e o esquivo sorriso reapareceu com a simplicidade de um pão sobra a mesa quotidiana. «Se um dia morrer – disse para consigo, - quero que o céu seja como este instante.»

Antonio Skármeta em OCarteiro de Pablo Neruda


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