As crónicas de Manuel António Pina, publicadas, ontem e hoje, no “Jornal de Notícias”, andam à volta do mesmo assunto: o indecoroso estado da nossa justiça.
1.
“Noticia o "Público" que um total de 1489 arguidos escapou, em 2009, a julgamento beneficiando da espécie de "excepção de riqueza" que constitui, no sistema penal português, o regime das prescrições. Alguns ter-se-ão apenas aproveitado de uma máquina judiciária entravada por bloqueamentos crónicos. Mas muitos outros - porque a Justiça será cega mas quem faz as leis (e, não sejamos ingénuos, também quem as aplica) tem sempre maneira de espreitar por debaixo da venda - "compraram" pura e simplesmente a situação.
Existe hoje um sector da "grande advocacia" que se especializou em atrasar processos, conduzindo-os, de incidente em incidente, de recurso em recurso, de pedido de aclaração em pedido de aclaração, à prescrição. A reforma de 2007, em grande parte feita por medida para o caso Casa Pia, semeou o Processo Penal de obstáculos garantísticos que, na mão dos advogados certos, facultam, a quem puder pagar as portagens, uma autêntica auto-estrada para a injustiça.
Há assim em Portugal duas justiças: uma para quem pode "comprar" a prescrição dos processos, outra para quem não pode. Parece que a actual ministra, gabe-se-lhe a coragem, quer acabar com o uso e abuso de expedientes dilatórios, desde logo através da limitação do número de testemunhas. A pergunta, no entanto, justifica-se: porque é que a apreciação de recursos e incidentes em geral não interrompe a contagem dos prazos de prescrição?”
2.
“Nem de propósito, no dia em que aqui se falava de certa advocacia que se especializou, trabalhando para "notáveis" e/ou gente de dinheiro, em levar processos à prescrição, usando a vasta panóplia de expedientes dilatórios que o Processo Penal, sobretudo após a reforma de 2007, faculta, um dos advogados de Isaltino Morais manifestava-se "surpreendido com a rapidez" com que o Tribunal Constitucional acabara de chumbar mais um recurso (só para o TC já vão dois, a acrescer aos para a Relação e para o STJ) da condenação do autarca e ex-ministro por crimes de branqueamento de capitais e fraude fiscal.
Ninguém lhe perguntou se estaria "agradavelmente" ou "desagradavelmente" surpreendido. Pois seria suposto que, num sistema judicial de pesadelo, em que os processos se arrastam anos (e, às vezes, décadas) nos tribunais, a "rapidez" fosse uma boa notícia. Mas, aparentemente, não foi e, no contexto das afirmações do advogado, a constatação de que "nem passou uma semana" sobre a entrega das alegações, tem o tom inequívoco de lamento. O que se percebe, pois já só faltam uns meses para a prescrição e a estratégia da defesa arrisca-se, com tanta "rapidez", a morrer na praia.
Mas haja fé: como Isaltino lembrou, ainda há mais recursos e recursos de decisões de recursos pendentes. E ainda se poderá, no último dia do prazo (ganhar-se-ão assim mais 10 dias), pedir ao TC que "aclare" a decisão. E o tempo não pára.”
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