O sol, que já ia alto, a temperatura agradável e o tráfego mais intenso, transformaram a estrada numa transitável camada de lama. Três quilómetros após o ponto de retorno, a Dempster manifestou-se definitivamente desagradada. Em silêncio, como é seu costume e meu gosto, mas irredutivelmente! Nem mais uma volta as rodas deram. Em termos simples, a peça no eixo de trás que possibilita que, quando pedalamos para a frente, tenhamos tracção, e quando pedalamos para trás – ou paramos de pedalar – a roda continue a girar, pifou. Tanto fazia pedalar para trás, como para a frente, não havia tracção e as rodas não giravam…parecia um filme do Chaplin.
“A Dempster adoeceu…
Parado, olhei-a, olhos no guiador e sorriso nos lábios, com uma tranquilidade e paciência que me são inusuais, procurando percebê-la. Fiz-lhe algumas perguntas, a que me respondeu cabisbaixa e triste, mas ainda não descodifiquei as respostas… O que é isto, uma birra? Ou o nosso contrato era “só” até ao fim da “ruta”, até ao “fin del mundo”, nem mais uma rodada? Não queres que atinjamos os 30 000 quilómetros? Olha que só faltam 12… Ia respondendo sem convicção, num código que, como disse, ainda não deslindei completamente, mas fiquei com a sensação que não estava a acertar no motivo… Olhei mais atentamente na sombra rebuscada do guiador e, por trás duma lágrima invisível, pareceu-me vislumbrar outra possibilidade: Gostaste tanto desta viagem e deste fim, que preferes ficar por aqui a viver a tua vida e não voltar para trás, para Lisboa, comigo? Hum… será isso uma mensagem, um alerta, um apelo…? E fiquei a matutar nesta inverosímil possibilidade. Como pode a Demspter, passando por tanta dureza, tanto frio e calor, tanta chuva, neve, lama, tanto solavanco, tantos furos, “ossos” partidos, reumatismo e artroses que a fazem gemer e ranger o dente, tanta subida e descida, tanta vida! querer persistir na mesma loucura!? Que raio, deve haver uma razão mais prosaica. Além do mais, uma bicicleta é uma bicicleta, faça o que fizer e ande por onde andar. Não tem vontade, nem consciência, muito menos sentimentos ou pensamentos. Ocorreu-me que as peças são capaz de ter uma validade limitada e que, nos últimos tempos, as condições climatéricas não têm sido as melhores. Provavelmente há apenas que substituir a peça e esquecer o assunto. Assim como assim, só faltam vinte quilómetros para regressar a Ushuaia e, depois, não conto pedalar mais… na Argentina. Sem grande convicção e menos paciente que no início do diálogo, expliquei-lhe que viver em Lisboa não é tão mau, pois a cidade é linda; voltar a trabalhar “no mesmo”, também não é tão mau. Basta encarar o dia-a-dia como se duma viagem – desta viagem – se tratasse: nas situações duríssimas, pensar apenas nos próximos dez metros a transpor; em condições muito duras, olhar apenas até à próxima curva da estrada; em condições sofríveis, estender a mente até ao próximo quilómetro; em condições boas, antecipar os próximos dez quilómetros; e quando nos sentirmos planar e passar a barreira do “aqui e agora”, esperar que o momento se eternize, sem memória do tempo ou do espaço. E quando acordei desta prédica, encontrei a Dempster olhando-me fixamente, com o que me pareceu ser um olhar de mofa. Felizmente passou uma pick-up dos guardas do parque, que nos transportaram meia dúzia de quilómetros até à saída do parque. Depois seria mais uma dúzia, com algumas descidas, até Ushuaia… Pelo sim, pelo não, decidi perdoar a ousadia à Dempster e levei-a ao médico de clínica geral, onde fica a fazer tratamento até amanhã. Pelo diagnóstico, não é grave, e a doença parece ser apenas do foro físico mas, em segredo, o médico não garantiu que não hajam perturbações mentais… “foi muito tempo, sabe? Parece ser uma doença rara, mas quando bate, bate forte…”
Texto e imagem de Idílio Freire
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