quarta-feira, 30 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO


«Alguns acharam que a festa de abril era incompatível com o pesar que sentimos pela morte do Papa Francisco. Estamos de luto, pensaram, e no luto não pode haver festa. 

Ocorreu-me a mim, velho agnóstico que sou, a ideia de que o verdadeiro luto pelo Papa Francisco estava afinal na alegria. Na alegria que ele próprio irradiava e na nossa profunda e inabalável alegria de abril».

Luís Filipe Castro Mendes de uma crónica no Diário de Notícias

Legenda: fotografia de Rui Ornelas

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Continuamos a palmilhar os passos que Miguel Real, no prefácio a As 7 Vidas de José Saramago, vai fazendo dos dias, dos anos do autor.

Lá atrás ficámos no íntimo desejo de José: «Idealizava ser escritor desde a adolescência — assim o dissera aos amigos, quando opinavam sobre o destino de adultos de cada um —, mas só tem o seu primeiro livro aos 12 anos.»

«Na juventude, pede um empréstimo de 300 escudos para comprar livros que, desprovido de estante em casa e de dinheiro para a comprar, acomodara num armário da cozinha. Consegue passar a empregado de escritório (e assim se dá a conquista da primeira muralha de Josephville: de operário a pequeno-burguês dos serviços) e casa. Continuando a ler, de forma autodidata, fazendo-se acompanhar sempre de um ou dois livros na mão, publica um romance falhado aos 25 anos e escreve um outro, que já não consegue publicar, vivendo com angústia os fracassos editoriais. Com mais de 30 anos, desprovido de contactos nos meios intelectuais e universitários, conhece, num café da Baixa de Lisboa, um diretor literário que o convida a integrar o setor de produção de uma editora, o que lhe muda radicalmente a vida (segunda muralha: o escritor falhado e leitor torna-se editor, convivendo com escritores portugueses de nomeada) — por lá trabalha durante cerca de 12 anos como «serviçal» de intelectuais, no papel de intermediário entre os autores e os tipógrafos; ele é o funcionário que põe os livros na rua. Assim vai granjeando contactos, sobre os quais — elo mais fraco — se sente honrado. Edita um livro de poesia e depois um outro, ambos totalmente estranhos à atmosfera poética da década, faz traduções do francês, escreve crónicas para jornais e crítica literária para uma grande revista de oposição política, alcançando, então, alguma notoriedade entre o meio jornalístico à época, repleto de escritores que classifica de «corporação literária» — de que se sente alheado apesar de fazer parte dela, profissionalmente (terceira muralha: a conquista de um lugar entre a intelectualidade dominante). Revoltado contra a cidade totalitária, que não lhe reconhece valor, contra a guerra colonial, contra a prisão de amigos e a opressão política do regime, adere ao Partido Comunista Português (PCP), pressupondo que a sua cidade ideal, Josephville, só poderia ser conquistada politicamente. Dá-se uma revolução na cidade — Saramago assume a direção de um dos maiores jornais e aí escreve como um comunista puro, sem jogos diplomáticos de poder (quarta muralha: a tentativa de construção política de Josephfille, uma sociedade sem classes. A revolução sucumbe e ele fica desempregado, não recebendo sequer o apoio dos seus camaradas, que o presumem excessivamente radical. A nova classe política afasta-se de quem tanto se comprometeu com a revolução — Mário Soares, o principal dirigente político do Partido Socialista, representa, então, para Saramago, o seu principal inimigo. Regressa à tradução, donde tira o sustento, escreve contos e um «ensaio de romance» de grande qualidade, de acordo com o espírito literário da época, que aponta para a desconstrução das categorias clássicas do romance. Visto que poucos leitores cativa, como no caso do livro anterior, só lhe resta experimentar aquilo que desde a adolescência desejara ser, o tudo ou o nada: isola-se no Alentejo, a região mais pobre de Portugal, e vive entre os camponeses, ouve as suas histórias, os seus anseios familiares, os desejos sociais, as histórias encantadas. Regressado a Lisboa, começa a escrever novo romance, retratando-lhes a oralidade, as histórias de humilhação e miséria, as aspirações centenárias; escreve como os camponeses falam, desprezando as indicações da gramática, da arte tradicional de bem escrever um romance. O livro não é aceite por duas editoras, que, com a fama de comunista do autor, nem o devem ter lido, mas encontra acolhimento numa casa editorial de esquerda, recentemente criada, e provoca o espanto dos leitores — não pelo tema, suspeito, inconveniente (a necessidade de uma reforma agrária), mas pelo tom, pelo estilo, pelas audácias morfológicas e sintáticas.»


Legenda: a ilustração deste e próximos Sublinhados Saramaguianos será feita com recortes dos Dossiers da Biblioteca da Casa sobre José Saramago.

(SJ-06)

as formas de conhecer-te são só duas

ou três: esta é q eu demora mais tempo.

a chuva parou e continuamos distraídos neste

amor de cabotagem, nunca demasiado

longe ou perto da carne e dos órgãos que uma

abóboda de ossos protege. Cumprimos

a liturgia das horas, repetida sem convicção ou

eficácia, e por vezes as palavras começam

a fazer sentido, como os gestos com que

te aproximo de mim, com uma só mão

e algum sono. uma navegação lenta,

familiar e confortável, porque

essa é a melhor forma de te conhecer

os dedos e o modo como os usas

para fazer tranças às horas, como quem

tece cabelos ou desfia um rosário

sem murmúrios, apenas a técnica de rodar

terços e mistérios no fundo da mão

para entreter os pretendentes e

esperar que eu regresse das longas

viagens – dez anos de cada vez –

em que me ausento sem sair de casa.

esta tarde estive em Lisboa e trago-te maçãs

vermelhas de uma mercearia da rua dos Lusíadas,

com as quais tenciono adormecer-te (como

na história que contamos todas as noites), porque

é essa a única forma de te conhecer

os medos e interpretar os sonhos, escrever

ao teu lado, enquanto dormes, a lista

das tarefas diárias com que nos ocupamos a

matar o tempo.


Tiago Araújo em  Resumo: a poesia em 2010 

terça-feira, 29 de abril de 2025

NOTÍCIAS DO CIRCO

Lendo notícias e textos de opinião, ideias, para um qualquer kit-após-futuro-apagão:

- rádio de pilhas

- um fogãozinho a gás camping para aquecer uma sopa, fazer uns ovos

- lanterna a pilhas

- uma caixinha com algumas moedas, algumas notas de 5, 10 euros.

- velas.

À LUPA

 

Dependentes… dependentes… dependentes… ou às voltas com as coisas simples lidas num texto de Fernanda Câncio:

«Hoje quando, malgrado os avisos da Proteção Civil e da Comissão Europeia, grande parte de nós ainda não tem sequer um rádio a pilhas para se manter a par das notícias, de ordens, de alertas?

Hoje quando tantos têm casas inteiramente alimentadas a eletricidade, cafeteiras elétricas, microondas, placas de indução, termo-acumuladores, onde nem um bico de fogão a gás há para aquecer uma sopa ou fazer uns ovos mexidos e se não há energia não dá — óbvio — para chamar comida pelas aplicações?» 

SE FOI UM ENSAIO, FALHÁMOS


«Com a primeira mensagem da Proteção Civil a chegar às 21:25, quando finalmente, ao fim de 10 horas, a energia começava a voltar, a experiência deste apagão radical demonstrou que não estamos, de todo, preparados. O quanto todo o nosso sistema está assente na ideia de que nada vai acontecer aqui, de que nada nos chegará, de que tudo o que temos teremos sempre.»

Fernanda Câncio no Diário de Notícias

QUOTIDIANOS


Em pleno Apagão, o voltar ao Rádio de Pilhas, ouvir os gritos de alegria na rua quando a luz começou a aparecer, os que chegaram a lançar foguetes, o açambarcamento nos supermercados, as notícias falsas que começaram a ser lançadas para o ar pelo ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Castro Almeida, a admitir a hipótese de um ciberataque, a dependência das nossas vidas face aos telemóveis que aconteceu sem termos dado por isso, ou a frase que um dia ouviu de quem não tem telemóvel e nisso reside a relativa felicidade em que vive…


«O aparelho de rádio tinha um caixilho de madeira e a face era como uma máscara cega, olhos e boca em panos. Havia a mesma melancolia nos brados dos relatos, nas sinfonias, nas novenas de Fátima e na voz quebrada dos discursos de estado. Como se o espírito nos desse sinal do holocausto, alheadas sobre o enlace das silhuetas: estarmos vedadas de tanta finura, veemência ou persuasão. Ainda hoje me assola a tristeza desses sons que não escuto e me temo de um rádio aberto em surdina à minha beira. Vivíamos sob esse rumor a que só mais tardiamente demos sentido, quando o hóquei patinado se tornou uma paixão cívica.»

Maria Velho da Costa em Missa in Albis

Conheci um guitarrista que dizia «a minha amiga rádio». Sentia um parentesco menos com a música do que com a voz da rádio. A sua qualidade sintética. A sua voz única, distinta das vozes que a atravessam. A sua capacidade de transmitir a ilusão de gente a grande distância. Dormia com a rádio. Falava para a rádio. Discordava da rádio. Acreditava numa Terra Longínqua da rádio da Rádio. Como achava que nunca encontraria esta terra, reconciliou-se consigo mesmo a ouvir a rádio. Acreditava que tinha sido banido da Terra da Rádio e condenado a errar eternamente pelas ondas sonoras, ansiando por um posto mágico que o devolvesse à sua herança há muito perdida.

Sam Shepard em Crónicas Americanas

Andava sempre à pesca de qualquer coisa na rádio. A par dos comboios e dos sinos, a rádio fazia parte da banda sonora da minha vida.

 

Bob Dylan em Crónicas 

Já não estou muito capaz de trabalhar, porque a memória, a vista, tudo isso inibe um tipo. Já não leio os jornais, não consigo. A minha ligação com o mundo é a rádio.

Luiz Pacheco

«Ouça, importa-se de baixar mais o rádio?»

«Ora essa. Desculpe, tenho a mania de o pôr muito alto.»

«Como os taberneiros.»

«Ou como os apreciadores de jazz. Como as prostitutas baratas, se quiser. O rádio, Guida, é um vício de solitários.»

José Cardoso Pires em O Anjo Ancorado

Durante o dia, a telefonia estava ligada para o emissor clássico da Emissora Nacional. Apenas ao serão havia uma interrupção do fluxo da grande música quando a voz do meu avô ordenava: “Meninas vamos ouvir a BBC”. Mudava-se de onda durante os minutos com as notícias de Londres lidas pelo Ferando Pessa ou pelo Augusto da Silva, sobre o desenrolar da guerra. “Aqui Londres, Estação da BBC na banda dos 41 e 49 metros”.

António Cartaxo em Quase Verdade Como São Memórias

segunda-feira, 28 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO


 Um apagão geral de energia, sem previsão de resolução, mostrava, sem margem para dúvidas, a fragilidade de uma sociedade que se baseia na electricidade para funcionar.

David Pontes no Editorial do Público.

VIGÍLIA

Não te deixes adormecer: 
é o que dizem a quem luta por estar vivo, m          
é o que nos dizemos quando
o frio já entrou muito fundo dentro de nós
e toda a vida se deixou cobrir de nevoeiro.

Não, eu não me deixarei dormir.
Descansa, tu que cada madrugada 
encontras as minhas mãos 
a afastar o frio e o nevoeiro.
Eu não me deixarei dormir.
Nós não nos deixaremos dormir.
O nosso amor é uma vigília sem quebras
e nunca nenhum povo se deixou hibernar.


Luís Filipe Castro Mendes em Poemas Reunidos

domingo, 27 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO

O melhor dos sonhos é criá-los todos os dias e cumpri-los quando houver tempo e disposição.

Horácio Tavares de Carvalho em Inquérito Póstumo

Legenda: fotografia de Ramon Masats

REOLHARES


PORREIRO, PÁ!


«De manhã fui ao “Minipreço” comprar as amêndoas para os netos, os folares para os afilhados.

Apanhei uma molha de todo o tamanho. Uma rabanada de vento partiu o chapéu-de -chuva que a senhora da Farmácia me oferecera pelo Natal.

D. Manuel Clemente, bispo do Porto, diz que os portugueses têm de viver de forma mais modesta e acredita que ainda estão para chegar os sacrifícios.

Não li, mas parece que o Miguel Sousa Tavares escreve hoje, no “Expresso”, que os políticos nos enganam.

O meu avô filosofava que se os políticos dissessem as verdades não ganhavam eleições, ao passo que Nikita Khrushchev lembrava que os políticos são iguais em toda a parte: “prometem construir pontes mesmo onde não existem rios.” e, amargamente, Miguel Torga, no dia 14 de Novembro de 1985, escrevia no seu “Diário”:

“Há uma coisa que eu nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança”.

O INE, em sintonia com o Eurostat, anunciou este sábado uma revisão da notificação relativa ao Procedimento dos Défices Excessivos enviava a Bruxelas no final de Março. Agora, o défice de 2010, que já fora revisto em alta para 8,6 por cento do PIB, passa a ser de 9,1 por cento, por causa de três contratos de Parcerias Público Privadas.

Bem diziam os rapazes da troika que iriam trabalhar durante a Semana Santa.

Ao cair da noite, segundo a SIC, o Benfica, ao vencer o Paços de Ferreira por 2-1, conquistou a Taça da Liga.

E se por via disto,  Jorge Jesus já não é despedido?

Será que vai chover neste Domingo de Páscoa?

Algumas incertezas…

Um destes dias, hei-de perguntar-me dos motivos por que me envolvi nisto da meteorologia pascal…

Legenda: pintura de Steve Hanks.»

 

(Em Reolhares vamos publicando textos publicados, nos últimos 15 anos no Cais do Olhar.

Texto publicado no dia 23 de Abril de 2011).

À LUPA


 Livraria Bertrand no Centro Comercial do Campo Pequeno.

Estava a olhar para os escaparates.

Uma gentil moça aproximou-se com um sorridente «posso ajudá-lo?»

O livro que ele queria era «O 25 de Abril que Novembro Traiu» de Manuel Duran Clemente.

Há umas semanas falhara o lançamento do livro na Voz do Operário.

A moça não conhecia nem livro nem autor.

- Vou ali ao computador para ver se temos.

Após procura, novamente sorridente, disse: 

- Ah! não recebemos livros dessa editora…

POEMAS AUTOGRAFADOS


Um dos nossos mais brilhantes intelectuais, é o 19 da Colecção Poetas de Hoje da Editora Portugália, com Memória Dum Pintor Desconhecido. 

Falamos de Mário Dionísio.

Transcrevo o poema que Mário Dionísio escolheu:

 

Altos cachões de espuma

com instantes de prata

Um corpo aqui se afunda

em seu túmulo de água

 

De extremo a extremo um pano azul puído e sujo

batido pelo vento em si mesmo desata um arvoredo

de mágoa

 

Rola no horizonte o peso

redondo e cavo dum balão de medo

 

Ao longe um eco verde

de lata

 

É de José Gomes Ferreira uma das mais fulgurantes frases sobre Mário Dionísio:

«…afinal toda aquela frieza aparente não passa de uma ternura adiada.» Podemos recordar uma outra, a de Maria Teresa Horta: «Mário Dionísio tem o espantoso fascínio da inteligência.»

Professor, pintor, escritor, um intelectual que fez da postura ética uma referência a toda a prova.

Quem o quiser conhecer tem à sua disposição um livrinho, publicado em Dezembro de 1987, e em que desenhou a sua Autobiografia, do qual fizemos, neste Cais, algumas leituras:

«O quê? Projectos? Mais projectos? Coço a cabeça, meio envergonhado. Um homem com esta idade! Terei tempo sequer para metade deles?

Vale-me então um espírito maligno, género anãozinho da floresta (outra vez a floresta...) que me pousa no ombro enquanto escrevo ou pinto e que me diz, gozão: «Inquietas-te porquê? Que falta é que tudo isso faz?» E, com esta, arruma-me de vez: «Estás convencido de teres estado sempre certo?»

A defesa, abro o meu irregularíssimo Diário num dia de 63, aí calhou, e leio-o como se a data fosse a de hoje: «Não queiras que cada página seja um monumento. Não queiras tudo. E o melhor ca­minho para não encontrares nada. Não te sintas esmagado pelos grandes nem condoído com a fa­lência dos que detestas ou desprezas ou apenas la­mentas. Escreve. Esquece tudo, tapa os ouvidos, mete-te bem na tua experiência, só na tua expe­riência. Grande ou pequena, é o que tens. Não de­sanimes, não desistas, não te perturbes com a indi­ferença dos outros, não te entusiasmes com os aplausos dos outros. Escreve! Escreve!».

O livro, Memória dum Pintor Desconhecido, é dos poucos da Colecção Poetas de Hoje, que não tem a acompanhá-lo um estudo sobre a sua obra.

Desconheço as razões. Mas José Gomes Ferreira seria o prefaciador ideal, como o demonstram  as palavras que escreveu em A Memória das Palavras:

«Confesso que sempre me deslumbraram os homens do tipo de inteligência de Mário Dionísio, que deixam um rasto de prata em tudo oque escrevem, e cujo bom senso acaba por corrigir as inclinações natu­rais para o Absoluto, atinentes aos espíritos afectivos como o dele, ávidos de pureza leal.

Aliás, só uma inteligência de grande lucidez junta a um instinto muito fino da cultura e do julgamento crítico pode explicar a autoridade rá­pida com que se impôs, como doutrinador do neo-realismo, não ape­nas aos pares da sua idade, mas sobretudo aos adversários. Além disso, como dispunha de dotes fundos de riqueza artística e um espírito com dons de maleabilidade incomum, nunca recusou a ilumi­nação de novos temas poéticos e caminhos ainda mal pisados. Coisas que os críticos, não afeitos à necessidade da justiça das géneses, geral­mente se esquecem de apontar.» 

sábado, 26 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO


Recorte do Público de 24 de Abril de 1994.

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO

Citação da página 3 de  O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas de José Tolentino Mendonça.

1.

No dia 19 de Abril de 1973, na cidade alemã de Bad Münstereifel, militantes da Acção Socialista Portuguesa, idos de Portugal e de diversos núcleos no estrangeiro, como Londres, Paris, Genebra, Suécia, Argélia e Brasil, reunidos em Congresso, fundaram, com 20 votos a favor e 7 contra, o Partido Socialista.

Em Fevereiro de 1978, Mário Soares acabou por colocar o socialismo numa gaveta. Até agora, apesar de alguns esforços, a chave da gaveta ainda não foi encontrada.

«Ontem o Mário Soares fez um discurso de duas horas. A medida de Fidel é de quatro. Tem portanto ainda que andar. Mário Soares anunciou a «congelação» do socialismo até à recuperação económica. Quando tivermos melhorado, deve melhorar a retórica.»

Vergílio Ferreira em Conta Corrente, Volume II

Segundo alguns cronistas, Vasco Pulido Valente, por exemplo, o Partido Socialista nunca existiu.

José Saramago em Outubro de 1996:

«Os partidos chamados socialistas deixaram de ser esquerda. É melhor assumir essa realidade. Não vale a pena continuar com uma ficção que é a de julgar que os partidos socialistas ainda são esquerda. Já não são esquerda, são centro. É o centro de que o tempo em que vivemos hoje necessita.»

Fernando Piteira Santos sempre manifestou a sua coerência com a ideologia marxista.

A mando de Mário Soares, alguém foi perguntar-lhe:

- Por que é que não te filias no Partido Socialista?

Piteira Santos respondeu:

- Porque sou socialista!

Vistas largas sobre o actual panorama actual, poderá concluir-se que os militantes socialistas, que hoje se consideram sociais-democratas, cabem no Partido Social Democrata.

Os militantes do PSD que não se consideram sociais-democratas, caberiam no CDS.

Algumas almas do CDS caberiam «naquela coisa», Onde muitos já lá se encontram…

As coisas assim ficariam mais clarificadas, mais compostas?

«O que nós rimos depois – felizes por haver vida, por haver amigos, por haver socialismo  no futuro!»

José Gomes Ferreira em Dias Comuns Vol. VI

2.

Ventura, o presidente daquela coisa anda a tropeçar na concordância com a loucura idiota de Trump.

Tira-se-lhe a máscara a máscara e vê-se Donald Trump.
Ventura, apara além de outros «preciosismos», é pouco informado, inculto, desonesto e arrogante.

3.

Em Março 2.342 pessoas continuavam internadas no Serviço Nacional de Saúde por falta de sítio para onde irem, mais 8% do que no ano passado e, em média, ficam nos hospitais cinco meses após a alta clínica.  

À LUPA


«A existência de Trump, Vance, Putin e André Ventura é um forte argumento a favor da inexistência de Deus».

Tirado de um comentário à crónica de Ana Cristina Lourenço no Público de ontem.

JÁ NINGUÉM ESCREVE CARTAS


O romance Lusitânia, publicado em Dezembro de 1980, por Almeida Faria, encerra a trilogia de que fazem parte A Paixão e Cortes.

Uma sucessão de cartas escritas por diversas personagens que vão desde Abril de 1974 a Março de 1975.

Em 30 de Março  de 1985 o Diário Popular, pela mão de Baptista-Bastos, junta Almeida Faria, também por lá aparece o Dinis Machado, a entrevista está titulada com uma frase de Almeida Faria: «O Jornalismo dito cultural é um terrorismo interessado em promover a mediocridade.»

O recorte que ora se publica, não tem nada a ver com a entrevista do Bastos com o Almeida Faria, antes é uma carta inédita publicada pelo JL, dez anos depois da publicação de Lusitânia.

Já ninguém escreve cartas, Baptista-Bastos e Dinis Machado já nos abandonaram, e muita gente não saberá quem é Almeida Faria e pouquíssimos ainda são capazes de o ler.

MÚSICA PELA MANHÃ


DECCA - SLPDS 2031 - 1975

Lado A

Não, Não, Não Me Estendas A Mão - Eh! Amigo Lagarto - Ah! Se Um Dia O Pedro Louco - Vá, Diz Que Nunca Pisaste Uma Formiga - Cavalinho - Eh! Camponês!

Lado B

Ah! Como Odeio - As Aves Choram - Subi Ao Céu - E Agora José? - Ferreiro Velho E Cansado - Ah! Como Te Invejo

Orquestração e direcção de Jorge Palma

Comprei este disco em 1975 na Loja da Valentim de Carvalho na Rua Nova do Almada, em Lisboa.

Não conhecia José Almada, mas comprei o disco por causa dos poemas do José Gomes Ferreira que é um dos meus poetas de referência.

A capa tem ao cimo, do lado direito, um autoclante, em fundo dourado, a dizer: “Valentim de Carvalho 1824 – 1974 150 anos com a música".

Gosto deste disco por motivos vários, a tal ponto de que, tendo-me desfeito de tantos LPs, EPs, Singles e uma miserável falta de espaço, este ficou aqui em casa ao lado de outros.

Nunca mais me lembrei dele até ter sido agora referido. Passados todos estes anos continua a ser um trabalho muito interessante – não é impunemente que o dedo do Jorge Palma também anda por ali - e que constituiria alguma surpresa para quem nunca o ouviu.

Comovente o seu “Ah! Se Um Dia o Pedro Louco”, com aquele seu sotaque característico, “agora que estou só já posso arrancar da boca os versos da canção que te alimentará”

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Com o 25 de Abril, já conquistada a liberdade, as inscrições murais multiplicaram-se, verificando-se uma extrema diversidade de directrizes e de opiniões. Dir-se-ia até que a imprensa mural, por esse Portugal fora, se revitalizou intensamente.

Olhem-se as fotografias constantes de mais um livro que o Público vem publicando, mensalmente, sobre o 25 de Abril.

Reproduzo esta.

Pela simplicidade, pelo apoio que, então, terá dado  a quem àquela porta bateu.

OLHAR AS CAPAS


As Paredes Em Liberdade

Capa: Fernando Felgueiras e Amélia

Fotografias: José Marques

Colecção 25 de Abril Os Dias da Revolução nº 6

Edição fac-simile A Bela e o Monstro/Rapsódia Final/Jornal Público, Lisboa Abril de 2025.

Ao longo de 48 anos, as paredes e os muros fizeram parte da imprensa clandestina portuguesa. Na calada da noite, arriscando a integridade física, mãos anónimas redigiam apressadamente a palavra de ordem, a crítica, o ataque antifascista

Foi assim que as nossas paredes e os nossos muros passaram a ser um reflexo vivo da nossa consciência política, do nosso inconformismo, da nossa ânsia de liberdade em plena opressão.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO


Se me esqueci dos cães?

Não, não me esqueci dos cães. Nem dos que ladram, nem dos que mordem. Mas é um tema para mais vasta meditação. Não quero de momento perturbar a tonalidade uniformemente ténue, carinhosa, fraternal desta homilia.

Porque nós somos mansos, Mathilde, e o reino dos céus é assim nosso, como vem na Bíblia.

Manuel de Castro em Grifo, Antologia de inéditos, organizada e editada pelos autores, Lisboa Abril 1970.

Legenda: otografia de Jacques Henry Lartigue.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Já de há muito se sabe, que Montenegro e os acólitos que giram à sua volta, não gostam do 25 de Abril.

Causa-lhes azia, comichões várias…

Num golpe completamente saloio, miserável, aproveitaram-se do luto decretado pela morte do Papa Francisco, para cancelarem as festas governamentais – como se eles soubessem fazer festas, ou delas gostassem!...

David Pontes, em editorial do Público de hoje, diz-lhes o que realmente são:

«Mostrando uma insensibilidade notável às polémicas em torno desta data e da importância deste 25 de Abril específico, o executivo embrulhou-se sobre o que podia ou não fazer devido ao luto nacional por causa do Papa Francisco e criou uma polémica escusada, quando o apelo deveria ser a que o dia de hoje seja o mais consensual possível. Tal como foi o ano passado, com a participação no desfile de Lisboa do presidente da Assembleia da República, Aguiar-Branco, e da Iniciativa Liberal, que este ano volta a integrar o cortejo.

É este 25 de Abril, uno e inclusivo, que se quer. Sempre.»

EI-LA A CIDADE


 Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias, durou a barbárie salazarenta/marcelista, o tempo do desprezo, como lhe chamou Mário Dionísio.

Éramos um país que vivia debaixo de um atraso sem medida, tempos terríveis que só quem neles viveu tem a justa medida – quem passa por elas é que sabe!

O avô senta o neto nos joelhos e conta: foi assim.

Acreditávamos.

Tão só.

«Quem não viveu, esqueceu ou renunciou às delícias das ilusões desses grandes dias nunca vai conhecer o exacto perfume das flores.»

A festa foi bonita, pá.

Manuel António Pina:

«Durou, o sonho, só uma semana, mas esse é um património que ninguém nos tirará. Na tarde do 1º de maio, já nos confrontávamos uns com os outros.

De então para cá, tem sido o que se sabe. Carlyle escreveu que as revoluções são sonhadas por idealistas, realizadas por radicais, e que quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.»

Cinquenta e um anos sobre a madrugada, lembrando Sophia, que esperávamos, quando emergimos da noite e do silêncio.

Também escreveu José Saramago:

«Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim: seria igualzinho aos outros se não fossemos nós a «fazê-lo» diferente.»

Ao longo destes anos, tenho vindo a ouvir os que, a partir de um certo tempo, sempre anunciarem que o 25 de Abril se tornaria num 5 de Outubro.

Nunca acreditei e ainda não vi a possibilidade de isso vir a acontecer.

Gente que pensa que a memória do 25 de Abril é algo difuso, que com o tempo se tornará insignificante, gente que advoga o silêncio como um argumento.

Serenamente vos digo:

Não há nenhum 25 de Abril em que não me venha à memória, o 1º poema de Canto e Lamentação na Cidade Ocupada, incluído em  A Invenção do Amor e Outros Poemas, de Daniel Filipe lido, relido vezes sem conta, nos tais tempos difíceis:

Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

Legenda: Desenho da Prisão de Álvaro Cunhal

quinta-feira, 24 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO


«Eu e a Zélia estivemos numa Sociedade Operária. Aí actuámos, eu e o Paredes (o filho é ainda melhor que o pai) no meio de uma assistência atenta e compenetrada, toda ela de operários e mulheres de xaile e lenço. Ofereci-lhes uma canção feita na véspera (16-05-64), uma espécie de evocação da terra alentejana e do seu símbolo ainda vivo na lembrança do homem povo: a Catarina Eufémia, uma ceifeira de Baleizão morta pela Guarda Republicana em circunstâncias que forneceriam matéria para uma canção de gesta. É claro, que não é isto que interessa manter nestes contactos efémeros com os «mujiks» do nosso tempo. Se alguma vez tiver de deixar esta terra é a lembrança dos homens que conheci em Grândola e noutros lugares semelhantes que me fará voltar.»

Excerto de carta de José Afonso enviada aos seus pais em 23 de Maio de 1964.

Legenda: Cartaz e texto da carta de José Afonso, retirados do site da Associação José Afonso

MÚSICA PELA MANHÃ


ZIP 30.020/S - 1971

Pare, Escute e Olhe - Arte Poética

Um muito interessante "single" do pré-25 de Abril, que reuniu algum sucesso popular, comprado na então sucursal da “Discoteca Roma”, na Rua Morais Soares, esquina com a Praça Paiva Couceiro (em Lisboa) e produzido por "Zip-Zip".

A loja, com duas simpatiquíssimas e competentes empregadas, não resistiu aos tempos de Abril e fechou. Mais tarde  a casa-mãe também fechou as portas na Av. de Roma. Para não variar instalou-se lá uma agência bancária e agora é café a armar ao fino.

À época, e ao nível da pequena banheira onde vivíamos (vivemos), este disco originou uma leve e doméstica polémica, qualquer coisa como mosquitos por cordas.

Por uma estranha omissão (tipográfica ou qualquer outra) não consta da ficha do disco o nome de Hélia Correia como autora do poema “Arte Poética”, face B do "single".

O disco revela apenas o nome de José Jorge Letria e daí poder inferir-se que Letria é o responsável, não só da música, como da letra.

O suplemento “Juvenil” do jornal “República” de 19 de Outubro de 1971, fazia publicar um “Para Que Conste” em que o facto é denunciado e, ao mesmo tempo, se revelava que “mesmo em espectáculos públicos não tem feito Jorge Letria qualquer alusão ao nome de Hélia Correia” e exigia-se a respectiva rectificação e invocavam-se direitos de autor e reprodução.

Já que estamos em maré de documentos e curiosidades, diga-se que, na contracapa do disco, José Jorge Letria fez publicar um texto de sua autoria: “É do Silêncio Que Vos Falo” e que aqui se reproduz:


“Foi mais de um ano de silêncio (depois do primeiro disco-fracassado). Mais de um ano de silêncio inteiramente assumido. Voluntariamente aceite. É fora dos circuitos normais (televisão, rádio, promoção, venda) que, dolorosamente, sem trincheiras nem disfarces, se descobrem os amigos (?), que se aprende a abominar a hipocrisia e a falsa coerência, a miséria das intenções, a ignorância das coisas elementares.

"É no silêncio (um certo silêncio, entenda-se), que se descobre a utilidade das palavras. O seu fogo. A sua forma exacta. A sua acutilante facilidade de chegar onde mais ninguém chega. E ao mesmo tempo a sua infinita pobreza. A sua enorme timidez. Sim, porque as palavras são tímidas. Haverá alguém que duvide?

"Para mim conservo a certeza de que está tudo ainda por fazer. Não são meia dúzia de discos ou de frases publicitárias, publicamente ditas, que definem uma música e lhe dão a necessária consistência. Desfaçam-se pois os equívocos. Já não é sem tempo. A quem me ouvir deixo, entretanto, a possibilidade de transformar em acto (ou quase) o que no canto se propõe. Se isso não acontecer fico, pelo menos, com a certeza de ter levado até ao fim a minha ingenuidade. Ou seja o silêncio donde partiu. Para os que ficarem pelo caminho vai também a minha saudação.” 


REOLHARES


 


Houve um tempo de cravos nos canos das espingardas.

Houve um presidente da Câmara, personagem sinistra, Krus Abecasis de seu nome, que proibiu, o cultivo de cravos vermelhos nos viveiros municipais.

Ainda hoje, as gentes, que vibraram nas ruas, que gritaram contra o medo, quando, pelas manhãs de sábado ou domingo, compram cravos para decorar as casas, não sabem comprá-los de outras cores que não vermelhos.

Mas Reolhemos a tal probição Após o 25 de Abril.

 

(Em Reolhares vamos publicando textos publicados, nos últimos 15 anos no Cais do Olhar).

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Já por aqui publicámos um Olhar as Capas com o livro de António Costa Santos, Antes do 25 de Abril Era Proibido, viagem, não exaustiva, das proibições que os ditadores Salazar e Caetano, durante 48 anos, obrigaram os portugueses.

Como o autor diz no prefácio: Um Tempo do Outro Mundo!

Sigamos, agora,  os capítulos do livro:

- Era proibido uma mulher entrar numa igreja de cabeça descoberta.

- Era proibido ir de minissaia para o liceu.

- Era proibido uma mulher casada viajar para o estrangeiro.

- Era proibido casar com uma professora.

- Era proibido o divórcio.

- Era proibido uma mulher andar na rua sozinha à noite.

- Era proibido ser prostituta.

- Era proibido usar biquíni.

- Era proibido beber Coca-Cola.

- Era proibido jogar às cartas nos comboios.

- Era proibido usar isqueiro.

- Era proibido dar beijos em público.

- Era proibido andar de bicicleta sem licença.

- Era proibido sacudir o pó.

- Eram proibidos ajuntamentos de mais de três pessoas.

- Era proibido editar e vender certos livros.

- Era proibido ler certos livros.

- Era proibido comprar, vender e ouvir certos discos.

- Era proibido  realizar certos filmes.

- Era proibido  ver certos filmes.

OLHAR AS CAPAS


Capitães de Abril: A Conspiração e o Golpe

Luís Pinheiro de Almeida e Rui Cabral

Prefácio: Maria Inácia Rezola

Colaboração especial : Carlos Matos Gomes

Capa: Raquel Gil Ferreira

Colecção Memórias de Guerra e  Revolução nº 32

Edições Colibri, Lisboa, Março de 2024

Quando chegaram à lisboeta Rua do Quelhas, apanharam um susto. À porta da Emissora Nacional estavam dois polícias de capacete e armados de pistolas-metralhadoras. Pimentel contaria: «Fiquei naturalmente apreensivo. Teria o MFA sido detectado e os objectivos ocupados pelas forças do regime?» Se assim fosse, o combate seria desastroso. Mas o líder dos insurrectos era um homem prevenido e vinha com uma marosca preparada. Ladeado por Frederico Reis Morais e pelo tenete Silva Pinheiro, abordou os guardas com voz segura que a experiência de flar às tropas em parada confere: «Tenho aqui uma Ordem de Operações do Governo Militar De Lisboa para ocupar estas instalações!» O polícia mais próximo respondeu mecanicamente: «É essa porta já aí à esquerda, em baixo.» Tocaram à campainha e entraram.

À LUPA

Albert Camus gostava de futebol.

Dizia que o melhor que sabia sobre a moral e as obrigações dos homens, devia-o ao futebol.

«Aprendi rapidamente que uma bola nunca nos chega de onde a esperávamos. Isso serviu-me para toda a vida».

Pier Paolo Pasolini também foi um apaixonado do futebol, que considerava como a «última representação sagrada do nosso tempo».

O Para Francisco tinha uma loucura mansa pelo seu San Lorenzo de Almagro.

Numa recente entrevista, proferiu a enigmática frase:

«Quem vence não sabe o que perde».

A PARTIR DESSE DIA

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a crescer
e a desafiar os enigmas puríssimos da palavra liberdade - no auge da paisagem
a ave indócil a que não renunciámos
é um símbolo fortíssimo contra os símbolos precários, os malogros
antigos,
a fome a que nos querem condenados
sempre que a morte ronda e o exílio
dói
como um cravo recentemente apunhalado.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a enfrentar o medo
que durante tanto tempo nos manteve separados
sem que soubéssemos como e quando acabaria – na terra e no amor
brilham profundamente as lágrimas dos pobres
e o sangue é uma flor misteriosa
que floresce de súbito
quando um grito se ouve no deserto
e uma gaivota volta
para nos contactar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a distribuir o coração
e a partir nesse barco em busca de límpidas aventuras
onde enfeitássemos a vida com sonhos realizáveis
e a solidão fosse completamente impossível – o silêncio abria-se
num manancial de palavras profundamente comovidas
[que nos enchiam de ternura
e nos aproximavam
dos incontáveis registos da fraternidade, a noite
era expulsa para sempre
e os braços davam-se e ardiam.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a felicidade
é algo muito mais tangível do que o que nós pensávamos
se se constrói pedra a pedra e palmo e a palmo se conquista
quando uma vontade solar e a solidariedade
não deixam ninguém ficar desprevenido – o assombro
principia a exercer o seu poder admirável, chega como
uma chuva benigna com o perfil da paz, tem o odor
interminável
da alegria.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a conjugar um futuro
um pouco mais perfeito, a erguer
a cabeça, a defendermo-nos
das múltiplas armadilhas que o ódio arma –
[entrávamos pela manhã
ainda com maior vitalidade
e com um pouco do azul da primavera progredíamos
como um par de namorados:
a proliferante espontaneidade dos seus beijos
transformaria o mundo…

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a frescura
é um bem vertiginoso que é necessário preservar cada vez mais
e que não basta a um homem
o benefício das mãos limpas perante a enternecedora figura de esperança
quando os lobos são os mais acérrimos inimigos da exclusiva claridade que há nas praias
e com falsos dentes de oiro esperam um mínimo descuido
para que possam destruir de um só golpe os sonhos e a beleza
de quem abre as portas de par em par a bens muito
[maiores
para que a volúpia entre e alvorece o ar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a agir conclusivamente
sobre o passado, a prevenir
o mal do desencanto.

Amadeu Baptista em Poemabril 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

POSTAIS SEM SELO


Dantes, havia cada vez mais gente revoltada; agora, há cada vez mais gente infeliz.

Joaquim Manuel Magalhães

OLHAR AS CAPAS

Origens e Evolução do Movimento de Capitães

Diniz de Almeida

Edições Sociais, Lisboa, Março de 1977

Os homens fazem a sua própria história, contudo não a fazem arbitrariamente, nas condições  escolhidas por eles, mas antes sob as condições directamente herdadas  e transmitidas pelo passado.

REOLHARES


Aproveitemos Reolhares para lembrar como as Marchas, as Danças, as Canções nasceram, criadas por gente única do nosso património, gente irremediavelmente esquecida:


MARCHAS, DANÇAS E CANÇÕES


Em Setembro de 1945, a casa de João José Cochofel,  no Senhor da Serra, em Semide, juntou Fernando Lopes-Graça, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira e João José Cochofel.

Na Sala Ping-Pong, nasceu o projecto musical Marchas, Danças e Canções.

Na contra capa do disco, explica ao que vinham essas canções:

«O que são as “Canções Heróicas” que, pela primeira vez, se oferecem ao público editadas em disco? Resumidamente, podemos dizer que são obrinhas de circunstância ou, se quisermos ser mais explícitos e sem temer o uso rigoroso das palavras, defini-las-emos como canções politicamente empenhadas. Politicamente empenhadas no sentido, ou na medida, em que pretenderam contribuir – e cremos que de facto contribuíram – para a luta do povo português, a que primordialmente foram destinadas, contra o regime despótico, anti-democrático e violentador de corpos e almas que durante cerca de cinquenta anos lhe foi imposto.»


Um ministro de Salazar disse: 

«É mais perigoso um mi bemol de Lopes Graça do que mil panfletos subversivos.»

Por sua vez, José Gomes Ferreira, em A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim, conta como, naquele ano de 1945, tudo começou:

«Nesse Verão, como lhe contasse que eu ainda não tinha encontrado poiso no campo para convalescer, Fernando Lopes Graça, propôs-me:

-Venha comigo para o Senhor da Serra, perto de Semide…

- Há por lá alguma pensão?


- Pensão propriamente dita não há. Mas a srª Rosinha costuma receber hóspedes num quartito muito limpo e com uma vista extraordinária para o Vale da Lousã… E fica a dois passos da casa do João José Cochofel, onde vou instalar-me.

Na casa de João José Cochofel juntaram-se, então, Fernando Lopes Graça, José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira.»

Novamente José Gomes Ferreira:

«Por esses dias, com tantos poetas às ordens, ensejou-se a Fernando Lopes Graça realizar um velho sonho que expôs em meia dúzia de frases sóbrias aos circunstantes. Queria letras para canções. Marchas, danças, rondas infantis, hinos… O que nos apetecesse. Contanto que não nos demorássemos muito, pois a inspiração já ardia.»

Esgotada a inspiração dos poetas circundantes, Fernando Lopes Graça implorou o auxílio a Coimbra (Joaquim Namorado, Arquimedes, Ferreira Monte) e a Lisboa, donde acudiram ao chamamento Mário Dionísio, Armindo Rodrigues e Edmundo Bettencourt.

(Texto publicado em 29 de Março de 2017)

Legenda:

Na primeira fotografia vêem-se João José Cochofel, Fernando Lopes Graça e José Gomes Ferreira.
Na segunda fotografia João José Cochofel e Carlos de Oliveira.

Fotografias retiradas da Fotobiografia de José Gomes Ferreira 

 

(Em Reolhares vamos publicando textos publicados, nos últimos 15 anos no Cais do Olhar.).

MÚSICA PELA MANHÃ

A especulação imobiliária que invadiu o país nas últimas décadas, vai obrigar que a Academia dos Amadores de Música tenha que procurar um outro espaço. Centenas de alunos irão ser prejudicados. Algumas manifestações têm ocorrido mas nada está fácil.

A Câmara Municipal de Lisboa, dirigida pelo Sr. Moedas, tem outras preocupações. Essa história das Lojas com História é uma quimera, algo para adormecer camelos.

Como diria o Zé Gomes Ferreira:

«Os parvos pertencem todos à mesma Pátria com nomes diferentes.»

De novo José Gomes Ferreira:

14 de Maio de 1969

 

Fui esta noite à Academia dos Amadores de Música ouvir o coro do Graça que está em boa forma…

Na assistência muitas caras conhecidas. Caras antigas. Mas o fio encantado que nos unia a todos noutros tempos quebrou-se.

José Gomes Ferreira no 7º volume dos Dias Comuns.

A Música desta manhã é Acordai, poema de José Gomes Ferreira, música de Fernando Lopes Graça:

Acordai

acordai

homens que dormis

a embalar a dor

dos silêncios vis

vinde no clamor

das almas viris

arrancar a flor

que dorme na raíz

Acordai

acordai

raios e tufões

que dormis no ar

e nas multidões

vinde incendiar

de astros e canções

as pedras do mar

o mundo e os corações

Acordai

acendei

de almas e de sóis

este mar sem cais

nem luz de faróis

e acordai depois

das lutas finais

os nossos heróis

que dormem nos covais

Acordai!


Legenda: A 12 de Novembro de 1966, o Diário de Lisboa-Juvenil retomava, com a presença de Eduardo Prado Coelho, os seus Encontros.
No dia 26 de Novembro foi a vez do jornalista Manuel de Azevedo.
Fernando Lopes Graça e Dulce Cabrita, foram os convidados para o Encontro realizado no dia 21 de Janeiro de 1967.