“Ou o vento mudou ou a direcção da estrada de alterou, pois os 60 quilómetros até Piedra Buena demoraram a passar. Sorte que a jornada era curta… No pequeno povoado de Piedra Buena há pelo menos quatro hotéis e, para meu espanto, pelo menos três estavam lotados. Depois de perguntar a um polícia onde afinal me poderia alojar, encaminhei-me para o “complexo turístico isla pavon”, já fora da cidade. Mas no cume da pequena colina à saída da cidade, um miúdo franzino e ar vivaço mandou-me parar. Estendeu-me a mão, apresentou-se como artesão – exibindo o colar que trazia ao pescoço – e vinha oferecer-me uma casa para eu ficar, pois tinha escutado a conversa com o polícia, disse. É uma casa pequena, mas podes tomar duche, dormir e mesmo cozinhar. Ele próprio percorreu o Uruguai de bicicleta e acha que só um louco vem para a Patagónia no Inverno. Agradeci-lhe e segui na peugada da “máquina” dos avós, que conduzia devagar, à minha espera. Chegámos à pequena casa de madeira pintada de verde, que exibia um pequeno anúncio na janela a dizer “para alquillar” e, enquanto me preparava para um duche, foi-me contando mais alguns pormenores da sua ainda curta vida… nasceu ali no pueblo mas logo que cresceu foi para Buenos Aires, em busca de cultura e conhecimento. Conheceu muita gente, interessou-se pelo artesanato e aprendeu o que sabe com outros artesãos. A vida de artesão já o levou ao Uruguai, Chile e Bolívia, onde participa em feiras de artesanato, mercados e locais turísticos. Agora pretende alargar a rota e subir ao Peru, quem sabe Equador e Colômbia. Perguntei-lhe se conseguia viver apenas com o fruto do seu trabalho artesanal e disse que com quatro horas de trabalho diário, para repor as peças vendidas, consegue-se. Há que controlar os custos, escolher sítios baratos para comer, partilhar a dormida com outros artesãos – por vezes dormindo em casa de artesãos locais – mas consegue-se. E aquele trabalho manual e, ao mesmo tempo, artístico, é uma excelente terapia, um bom karma, diz. No canto da sala/cozinha da pequena casa, estendiam-se os arames, alicates, tecidos, fios e mais uma série de materiais que ia manejando com cuidado e precisão, apesar de descontraidamente. Quis pagar-lhe o aluguer da casa, mas quase se ofendeu… então comprei-lhe algumas peças de artesanato “para dar às chicas” e fiquei a vê-lo tomar mate e manejar as ferramentas e materiais como se estivesse ausente. O Edgar, que regressa à sua estrada de artesão na sexta-feira, depois de ter passado dois meses em Piedra Buena, dormia em casa dos avós e só utilizando esta casa para o seu labor ou quando tinha alguma chica. Como hoje não tinha chica, depois de concluir a sua jornada e me mostrar a planta, lá fora, onde deveria ficar a chave amanhã quando partisse, deixou-me a casa toda para mim. Não é desarmante a atitude absolutamente generosa, pura, fraterna, deste miúdo artesão? Quantos de nós faríamos o mesmo, perante um estranho, um estrangeiro, um desconhecido, mal encarado…? Não tenho viajado muito pela Europa civilizada, deprimida e lamurienta no seu luxo, fausto, opulência… mas já calcorreei vários milhares de quilómetros em bicicleta e, tendo encontrado simpatia, a diferença é abissal! Deve ser mesmo estatisticamente verdade que são os que menos têm aqueles que mais compartilham. Imagine-se se os que tanto têm, tivessem semelhante generosidade.”
Texto e imagem de Idílio Freire
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