O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as
águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui
me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio,
aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor
não têm outro sentido
além do que nasce das
próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o
tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo
cigarros nos cigarros,
respirando o fumo
húmido das origens, vigiando
a transparência que se
desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as
empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha
saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te
ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas
passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem
todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se
esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam
em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas
eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo
dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra
densidade os meus
impulsos de treva: cama
obscura para onde desço
quando adormeço. Mas
tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo
de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba
- a sílaba inicial
do mundo, a
interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um
suicídio de murmúrios,
percorrida pela única
percepção inútil: a da vida
que se esvai no
instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte,
a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se
abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o
sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas
pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva
através de nós
uma existência
puramente interior, despida
do fulgor animal das
manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos
quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o
rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos
olhos.
Nuno Júdice
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