segunda-feira, 14 de julho de 2025

TRABALHO DE CASA

 O que faço na memória de um degelo de rios, quando

as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante

de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio

fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos

da despedida e do amor não têm outro sentido

além do que nasce das próprias águas: efémeros,

como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,

ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,

respirando o fumo húmido das origens, vigiando

a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,

quando o vento as empurra para a estrada, pergunto

de onde vem a minha saudade de ti, e até onde

vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,

enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,

e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como

se o desejo não se esgotasse, também ele, como

estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,

trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços

sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,

puxando com a sua negra densidade os meus

impulsos de treva: cama obscura para onde desço

quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,

puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio

se transforma em sílaba - a sílaba inicial

do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as

origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,

percorrida pela única percepção inútil: a da vida

que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra

abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando

as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,

gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias

que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,

para que a terra viva através de nós

uma existência puramente interior, despida

do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos

no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e

abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,

com o inverno nos olhos.

 

Nuno Júdice

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