PRIMUS INTER PARES
(Texto publicado em 28 de Outubro de 2011)
Há no Porto um café onde se pensa. Há no Porto um café onde
se escreve. Há no Porto um café onde se discute. Há no Porto
um café onde se é intelectual pelo preço acessível, a qualquer
bolsa, de meia de leite e torrada bijou.
Tem um ar recatado, simples: o aspecto,
doce e calmo, de um domingo de Novembro. Mas não se iludam, amigos: confesso
que este café me
preocupa e intimida. Que me suam as mãos, quando lá entro. Que me sinto
mesquinho e sem valia, quando me atrevo a mergulhar na mansuetude quase líquida
da sala.
Nesse café do Porto, os intelectuais contam-se pelo número de
clientes. Há-os verdadeiros e de pacotilha, circunspectos e irreverentes,
académicos e revolucionários. Há-os de todas as escolas e matizes, novos,
velhos, morenos, bexiguentos, altos, ínfimos, com rendosas conezias ou
dificuldades de dinheiro. Escrevem, pintam, dissertam, analisam, definem.
Sobretudo definem, quer dizer: classificam de acordo com a morfologia
conveniente, etiquetam, intitulam, fossilizam. É um café virado
do avesso, onde as janelas dão para o íntimo da pequenez das coisas: só por se
estar olhando a rua através das cortinas ondulantes, a rua e o seu sentido
hieroglífico tornam-se perigosamente inexistentes. Depois, quando se vem, de
novo, para a alegria do sol, é indispensável e urgente reinventar a rua sem
limites até ao mais inútil e inofensivo dos disfarces. E para quê, afinal?
Pois, senhores, é bem fácil a resposta: para que, à mesma hora do mesmo dia
igual, qualquer cliente possa fechar os olhos à presença do mundo, pensando,
discutindo, escrevendo. E registe-se, para uso dos iletrados irrecuperáveis, e
nosso próprio conforto espiritual, que isto de latim é uma bela coisa.
Daniel Filipe em “Discurso Sobre a Cidade”
Legenda: são
lindíssimos os cafés do Porto. Alguns ainda resistem.
Segundo o jornalista Germano Silva, o café que Daniel Filipe invoca nesta crónica, é o Café Rialto, que já não existe. Ficava na Praça D. João I e uma das tertúlias reunia o Daniel Filipe, o Egito Gonçalves, o Papiniano Carlos, o Luís Veiga Leitão, o António Rebordão Navarro, às vezes o José Augusto Seabra. Mantinham na altura uma colecção de poesia: Notícias do Bloqueio.
Andei à procura de uma fotografia do Rialto, mas não encontrei.
A que ilustra o texto é do Café Majestic, um ex-libris da cidade.

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