quarta-feira, 2 de julho de 2025

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Os grandes livros terão que ser lidos mais do que uma vez.

E em cada leitura se descobre novos motivos de encantamento. Olhemos grande parte dos livros de José Saramago. Por exemplo: O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio Sobre a Cegueira, Manual de Pintura e Caligrafia, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Memorial do Convento.

Peguemos em Memorial do Convento.

Teria uns sete anos quando os pais, numa excursão com vizinhos, o levaram até ao Convento de Mafra e o quanto a estátua de São Bartolomeu lhe chamou a atenção, ao ponto, de passados muitos anos, voltando a Mafra, olhando a estátua ter dito de si para si: «Um dia, gostava de poder meter isto num romance.»

Assim terá nascido Memorial do Convento.

«Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos.»

Para o caso, Memorial do Convento.

O sublinhado que aqui me trás, foi a releitura (página 169) da apresentação da Passarola a Domenico Scarlatti.

Para além do músico, entram o Padre Bartolomeu Lourenço, Baltazar, Blimunda e… cerejas.

“Na sua frente estava uma ave gigantesca, de asas abertas, cauda em leque, pescoço comprido, a cabeça ainda em tosco, por isso não se sabia se viria a ser falcão ou gaivota., É este o segredo, perguntou, Este é, até hoje de três pessoas, agora de quatro, aqui está Baltasar Sete-Sóis, e Blimunda não se demora, anda na horta. O italiano fez uma pequena vénia na direcção de Baltasar, que respondeu com outra mais profunda, ainda que inábil, sempre era ele o mecânico, e além disso estava sujo, enfarruscado da forja, em todo ele só brilhava o gancho, do muito e constante trabalho. Domenico Scarlatti aproximou-se da máquina, que se equilibrava sobre uns espeques laterais, pousou as mãos numa das asas como se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar do seu grande peso, cavername de madeira, lamelas de ferro, vime entrançado, se houver forças que façam levantar isto, então ao homem nada é impossível, Estas asas são fixas, Assim é, Nenhuma ave pode voar sem bater as asas, A isso Baltasar responderia que basta ter forma de ave para voar, mas eu respondo que o segredo do voo não é nas asas que está, E esse segredo não o posso saber eu, Não posso dar mais que mostrar o que aqui se vê, Já isso basta para que eu agradeça, mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta.


Baltasar e o padre Bartolomeu Lourenço olharam-se perplexos, e depois para fora. Blimunda estava ali, com um cesto de cerejas, e respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo, e todas as paredes, se for preciso. Esta é que é Blimunda, disse o padre, Sete-Luas, acrescentou o músico. Ela tinha brincos de cerejas nas orelhas, trazia-as assim para se mostrar a Baltazar, e por isso foi para ele sorrindo e oferecendo o cesto.

(…)

Sentaram-se todos em redor da merenda, metendo a mão no cesto, à vez, sem outro resguardar de conveniências que não atropelar os dedos dos outros, agora o cepo que é a mão de Baltasar, cascosa, como um tronco de oliveira, depois a mão eclesiástica e macia do padre Bartolomeu Lourenço, a mão exacta de Scarlatti, enfim Blimunda, mão discreta e maltratada, com as unhas sujas de quem veio da horta e andou a sachar antes de apanhar as cerejas. Todos eles atiram os caroços para o chão, el-rei


 que aqui estivesse faria o mesmo, é por pequenas coisas assim que se vê serem os homens realmente iguais. As cerejas são grossas, carnudas, algumas já vêm bicadas pelos pássaros, que cerejal haverá no céu para que também lá possa ir alimentar-se, chegando a hora, este outro pássaro que ainda não tem cabeça, porém se vier a ser de gaivota ou vulcão podem os anjos e os santos confiar que comerão as cerejas intactas, pois, como se sabe, aqueles são aves que desprezam o vegetal.

1 comentário:

Seve disse...

Já li e reli "O MEMORIAL DO CONVENTO".
Na 1.vez larguei à pág
50, na 2°. li-o quase de seguida e de 1 a 10 nota 10, adorei. E tenciono lê-lo numa 3.vez.
Os livros que gostei muito já os reli, por exemplo "STONER" de John Williams, "O ANO DA MORTE
DE RICARDO REIS", "CONTA-CORRENTE", são 10 volumes, já reli o primeiro.
"O PROCESSO" de Kafka.
"NA FLORESTA" de EDNA O' BRIEN, "A LOUCA DA CASA" de Rosa Montero, citei estes que reli mas há mais alguns, nomeadamente do John Steinbeck e outros que agora não me ocorre mas creio que citei os de que mais gostei.