terça-feira, 6 de maio de 2025

AH! SE EU VIVESSE COMO OS OUTROS

Ah! se eu vivesse como os outros

alheio ao espanto de existir!

 

Se ouvisse apenas no coração

o Pêndulo do Tempo Parado…

- feliz porque os mortos e os vivos

andam há séculos a tecer um céu de teias de aranha

para esconder o globo das estrelas.

 

Se passeasse pelas ruas,

neste apodrecer de caixão hirto

dento dum automóvel funerário

com brocados de imaginação de ouro

a a fingir vida com buzinas

na complicação do trânsito

a cem quilómetros à hora.

 

Se pisasse as pedras naturalmente

sem as magoar dentro de mim,

aflito com o relógio que se atrasa

e ainda bem! porque encontro um sentido no sol.

 

Se colecionasse selos

para mais sentir o carnaval das nações

com preços nítidos nos catálogos

e na boca o sabor a agonia das fronteiras.

 

Se saísse todos os domingos

de espingarda às costas

para enfeitar o céu de riscos de sangue…

E voltasse depois para casa

com cadáveres à cintura

por caminhos de sonhos lentos

e contemplações de paisagens com flores nuas de remorsos.

 

Se me dessem uma farda para morrer pela pátria

nos olhos das mulheres que querem que eu morra na cama.

Se fosse todas as noites

Ao clube de casaca

a fazer cerimónia com o meu corpo de pano com angústias de seda.

 

Se a fome dos outros aumentasse o meu apetite de nuvens

e comprasse a pasta de dentes exacta

para rir mais branco nos alões de sono a dançar.

 

Se desmontasse o motor dum automóvel

para tornar a montá-lo e a desmontá-lo outra vez…

… e a montá-lo de novo através dos séculos de musgo…  

E o desse por fim ao meu filho

para que ele continuasse a montá-lo e a desmontá-lo

com a condição de não comprar peças novas…

(Tudo isto misturado com a minha solidão de canto de ave.)

 

E principalmente

se um dia morresse na cama

sem perceber que estava a morrer…

 

Então até as árvores me tirariam o chapéu,

porque tudo seria mais pequeno do que eu.

 

José Gomes Ferreira em Poesia II

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