Ah! se eu vivesse como os outros
alheio ao espanto de existir!
Se ouvisse apenas no coração
o Pêndulo do Tempo Parado…
- feliz porque os mortos e os vivos
andam há séculos a tecer um céu de teias de aranha
para esconder o globo das estrelas.
Se passeasse pelas ruas,
neste apodrecer de caixão hirto
dento dum automóvel funerário
com brocados de imaginação de ouro
a a fingir vida com buzinas
na complicação do trânsito
a cem quilómetros à hora.
Se pisasse as pedras naturalmente
sem as magoar dentro de mim,
aflito com o relógio que se atrasa
e ainda bem! porque encontro um sentido no sol.
Se colecionasse selos
para mais sentir o carnaval das nações
com preços nítidos nos catálogos
e na boca o sabor a agonia das fronteiras.
Se saísse todos os domingos
de espingarda às costas
para enfeitar o céu de riscos de sangue…
E voltasse depois para casa
com cadáveres à cintura
por caminhos de sonhos lentos
e contemplações de paisagens com flores nuas de
remorsos.
Se me dessem uma farda para morrer pela pátria
nos olhos das mulheres que querem que eu morra na cama.
Se fosse todas as noites
Ao clube de casaca
a fazer cerimónia com o meu corpo de pano com
angústias de seda.
Se a fome dos outros aumentasse o meu apetite de
nuvens
e comprasse a pasta de dentes exacta
para rir mais branco nos alões de sono a dançar.
Se desmontasse o motor dum automóvel
para tornar a montá-lo e a desmontá-lo outra vez…
… e a montá-lo de novo através dos séculos de musgo…
E o desse por fim ao meu filho
para que ele continuasse a montá-lo e a desmontá-lo
com a condição de não comprar peças novas…
(Tudo isto misturado com a minha solidão de canto de
ave.)
E principalmente
se um dia morresse na cama
sem perceber que estava a morrer…
Então até as árvores me tirariam o chapéu,
porque tudo seria mais pequeno do que eu.
José Gomes
Ferreira em Poesia II
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