sexta-feira, 9 de maio de 2025

REOLHARES


Dois textos, já neste blogue publicados, mas que, nos tempos difíceis que atravessamos, vale a pena REOLHAR:

 

O FINAL DA GUERRA EM LISBOA

 

Não houve qualquer meio de impedir os portugueses de, nos primeiros dias de Maio de 1945, virem para as ruas, euforicamente, festejar a vitória dos aliados face à besta nazi.

Tão pouco isso interessava aos propósitos de hipocrisia neutral de Salazar.

Por isso as tolerou.

Sempre esteve com Deus e com o Diabo.

Tinha eu pouco mais de um mês de vida, mas por esses dias por estas ruas, lá andaram o meu avô e o meu pai.

O meu avô contava que, nas ruas, apareceram bandeiras portuguesas, britânicas, norte-americanas, francesas e… bandeiras do Benfica, habilidade, contava ele, utilizada para representarem a bandeira da União Soviética.

Numa entrevista, de que não tenho indicação de nome e data do jornal, José-Augusto França confirma a versão do meu avô:

«Mais tarde, soube que por cá os meus amigos tinham andado em grandes festas e que se fizeram manifestações a festejar a vitória dos aliados, apareceram uns paus sem bandeira e até bandeiras do Benfica. Eram, evidentemente, a homenagem aos aliados soviéticos, cujo nome não podia ser mencionado.»

José Gomes Ferreira, em Intervenção Sonâmbula, também refere o episódio:

«No entanto, o povo berrava nas ruas a sua alegria com lágrimas e bandeiras (muitos empunhavam apenas paus nus com imaginárias bandeiras vermelhas da pátria dos sovietes), ainda com alguns ingénuos a quererem convencer-se de que a mágica queda do salazarismo aconteceria no dia seguinte.

Quem não dançou, quem não cantou, quem não soltou vivas e morras nessa noite? Mas entre aqueles milhares e milhares de pessoas, recordo-me sobretudo – é curioso como certas imagens sobrenadam na memória em detrimento de outras – recordo-me do Fernando Lopes Graça então 30 anos mais novo, a mancar, com os pés doridos de tanto marchar pelas pedras de Lisboa.


Legenda: fotografia da Fundacionmapfre

 


O FIM DA GUERRA

 

O dia 8 de Maio de 1945 é a data oficial da derrota da Alemanha Nazi na Segunda Guerra Mundial.

Os aliados tinham acordado que o dia 9 de Maio de 1945 seria o da celebração da vitória. Contudo, os jornalistas ocidentais lançaram a notícia da rendição mais cedo do que o previsto.

A União Soviética manteve as celebrações para a data combinada e, ainda hoje, é nesse dia que a vitória é celebrada.

Em Lisboa, milhares de pessoas vieram para a rua vitoriar o fim da guerra.

O meu avô muitas vezes me falou desse dia heróico, da alegria, do entusiasmo dos anti-salazaristas que vieram para a rua com bandeiras inglesas, americanas, e bandeiras do Benfica que, por vermelhas que são, representavam a União Soviética, também presente em paus sem qualquer bandeira.

Nunca tive a confirmação da história das bandeiras do Benfica, de que o meu avô falava, estarem presentes nas manifestações.

Quando pedia uma confirmação ao meu pai, apenas recebia um sorriso.

Passei a ligar o eventual acontecimento aos entusiasmos do meu avô que, normalmente, se apresentava às pessoas como republicano histórico, benfiquista e anti-clerical.

Das bandeiras do Benfica não encontrei escritos, mas das bandeiras sem pau, acabei por encontrar.

Fazem parte da primeira história de O Mundo e os Outros do José Gomes Ferreira:

«Hoje, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, acabou na Europa a segunda guerra mundial. «Até que enfim!» - zumbiu a meu lado a voz melíflua dum cavalheiro de olhos acendidos de entusiasmo, de conjuntivite e lugar-comum.
«Até que enfim!», concordei eu, confuso de alegria, saltando do eléctrico para me embeber numa multidão ruidosa com bandeirinhas nas mãos, nas tranças das garotas, nos gritos dos cortejos – Vitória! Vitória – e nos paus de vassoura sem bandeiras«.

No dia 8 de Maio de 1945 eu tinha 50 dias.

Legenda: Quem se encostar à barra mansa do British-Bar e olhar a estante das garrafas, verá esta fotografia.
No dia 8 de Maio de 1945, a fachada do BB ostentava as bandeiras norte-americana, portuguesa e britânica. A outra não está.


(Em Reolhares vamos publicando textos publicados, nos últimos 15 anos no Cais do Olhar.)

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