Prosas Bárbaras
Eça de Queiroz
Introdução:
Jaime Batalha Reis
Lello & Irmão Editores, Porto s/d
Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura:
apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões,
ainda aqui as primaveras escutam os versos que o vento faz: sobre os seus
telhados ainda se beijam as pombas: ainda no silêncio, o ar escorre pelas
cantarias, como o sangue ideal da melancolia. E Deus ainda não é um poeta
impopular. Lisboa que faz? Antigamente a cidade, urbs, era o lugar que pensava
e que falava, que tinha o verbo e a luz. Roma criou a justiça, Atenas idealizou
a carne, Jerusalém crucificou a alma. Por isso Roma caiu, e os porcos enlameiam
os restos de Atenas, e os cães uivam no silêncio de Jerusalém. Os seus olhos
olharam muito para a verdade e cegaram: os seus ouvidos escutaram muito o
pensamento e ensurdeceram: as suas mãos esculpiram muito o ideal e tolheram-se.
Pensar é sofrer; alumiar é lutar. A noite, ao sucumbir, luta com a madrugada, e
deixa-lhe a chaga incurável do Sol: dela escorre a luz. As superstições, os
preconceitos, os erros, os prejuízos, as fatalidades, lutam com a alma e
deixam-lhe a ferida insanável do ideal: dela escorre a verdade. Esta ferida dá
a febre, o cansaço, o desespero, a convulsão. Paris tem esta antiga e trágica
ferida que teve Atenas, Babilónia e Jerusalém. Sofre porque pensa. Os pés têm a
intimidade da lama, as asas têm a camaradagem da luz. Todo o pé quer ser asa.
Daí ambições, desalentos, lutas obscuras, perdições, descrenças. fulgurações do mal, impurezas, traições, invejas, injúrias, torturas – a congestão do espírito! São estas as dores imensas, as nódoas do pensamento, as manchas do Sol. Lisboa não tem estes defeitos da luz: é serena, imperturbável, silenciosa. Quer a sua inviolabilidade, evita as feridas terríveis. Tem a sensatez, a prudência, a economia, o medo. Não quer alumiar, para não lutar, não quer pensar, para não sofrer. Não quer criar, pensar, apostolar, criticar. Escuta e aplaude toda a voz, ou sejam as imprecações sagradas de Danton, ou os versos do poeta Nero. As ondas que solucem, as florestas que se lamentem, ela tem o riso radioso e sereno.

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