domingo, 11 de maio de 2025

OLHAR AS CAPAS


Prosas Bárbaras

Eça de Queiroz

Introdução: Jaime Batalha Reis

Lello & Irmão Editores, Porto s/d

Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura: apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões, ainda aqui as primaveras escutam os versos que o vento faz: sobre os seus telhados ainda se beijam as pombas: ainda no silêncio, o ar escorre pelas cantarias, como o sangue ideal da melancolia. E Deus ainda não é um poeta impopular. Lisboa que faz? Antigamente a cidade, urbs, era o lugar que pensava e que falava, que tinha o verbo e a luz. Roma criou a justiça, Atenas idealizou a carne, Jerusalém crucificou a alma. Por isso Roma caiu, e os porcos enlameiam os restos de Atenas, e os cães uivam no silêncio de Jerusalém. Os seus olhos olharam muito para a verdade e cegaram: os seus ouvidos escutaram muito o pensamento e ensurdeceram: as suas mãos esculpiram muito o ideal e tolheram-se. Pensar é sofrer; alumiar é lutar. A noite, ao sucumbir, luta com a madrugada, e deixa-lhe a chaga incurável do Sol: dela escorre a luz. As superstições, os preconceitos, os erros, os prejuízos, as fatalidades, lutam com a alma e deixam-lhe a ferida insanável do ideal: dela escorre a verdade. Esta ferida dá a febre, o cansaço, o desespero, a convulsão. Paris tem esta antiga e trágica ferida que teve Atenas, Babilónia e Jerusalém. Sofre porque pensa. Os pés têm a intimidade da lama, as asas têm a camaradagem da luz. Todo o pé quer ser asa.

Daí ambições, desalentos, lutas obscuras, perdições, descrenças. fulgurações do mal, impurezas, traições, invejas, injúrias, torturas – a congestão do espírito! São estas as dores imensas, as nódoas do pensamento, as manchas do Sol. Lisboa não tem estes defeitos da luz: é serena, imperturbável, silenciosa. Quer a sua inviolabilidade, evita as feridas terríveis. Tem a sensatez, a prudência, a economia, o medo. Não quer alumiar, para não lutar, não quer pensar, para não sofrer. Não quer criar, pensar, apostolar, criticar. Escuta e aplaude toda a voz, ou sejam as imprecações sagradas de Danton, ou os versos do poeta Nero. As ondas que solucem, as florestas que se lamentem, ela tem o riso radioso e sereno. 

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