A
pág. 23 os autores fazem o realce que sempre acompanhou Saramago, desde a
adolescência ambicionava: escrever. E é a escrita que lhe salva a vida,
concluem.
«Fracassado como
serralheiro e empregado de escritório (que só a pobreza o obrigou a ser), como
editor, tradutor, jornalista e político, encontra realização aos 60 anos
naquilo que desde a adolescência sempre desejara: ser escritor. O sucesso dos
seus livros, harmonizando um ideal de justiça social com personagens
encantatórias e uma escrita radicalmente transgressora, reinventando
esteticamente a realidade, torna-o conhecido no mercado editorial nacional,
iniciando-o também no internacional. É a narração de uma vida heterodoxa de
Jesus, um Cristo humano, só humano, que consolida a sua revelação ao mundo (e
assim é derrubada, perto dos 70 anos, a sexta muralha de Josephville: ser um
escritor internacional). Finalmente, censurado pelo Estado, isola-se numa ilha
com o seu novo amor, só conhecido aos 64 anos, e, solitário, redige um dos melhores
romances do século xx numa mesa de pinho de pés roídos pelos seus três cães,
descrevendo, à semelhança dos cegos de Bruegel, o estado da humanidade — cegos
seguindo outros cegos em direção ao abismo —, livro que o encaminha para a
obtenção do Prémio Nobel da Literatura em 1998 (sétima muralha conquistada:
afinal, Josephville, criada através de livros, não era uma cidade onde se
sentisse bem, harmonizado com os outros, era o mundo inteiro).
Para Saramago, a vida sucedeu como no interior de um labirinto. Ele o disse, nas Intermitências da Morte: «labirinto sem portas. Ora aí está uma excelente definição da vida» , «como já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível» . No seu caso, a chave do labirinto (a escrita) estava lá, sempre esteve, mas a porta não se deixou abrir até ao ano de 1980. A imagem do labirinto que exprime nos romances, ele o experimentou na própria vida. Nunca a sua vida desenhou uma linha reta e Saramago universaliza o confuso sentimento de desorientação na vida até à década de 80, experimentando diversas formas de existência. De fracasso em fracasso, batendo a uma porta fechada ou a várias ilusórias, compensado pela ascensão social de membro do operariado à burguesia intelectual jornalística, em 1980, com 58 anos, Saramago era, para todos os efeitos, um derrotado da vida: um fracassado social (não tinha profissão com rendimento certo, não tinha emprego fixo senão o expediente da tradução), político (a revolução socialista, em que participara como protagonista, falhara), e literário (era um escritor mediano, que os grandes editores não desejavam nos seus catálogos, experimentando por três vezes a rejeição de editores).
A elite política e intelectual da cidade repudiava-o, anatematizando-o como, mais do que comunista, um radical. Ele ousara forçar os portões da cidade: crescido no Estado Novo, fora um pobre destinado ao humilde ofício de serralheiro; depois, a seguir à Segunda Grande Guerra, um parvenu, levado por sorte e acaso para uma editora ao serviço de trabalhos de produção; no final da década de 60 afirma-se como cronista e poeta, mais como cronista do que poeta, e torna-se, já na década de 70, um revolucionário, olhado com sobranceria, se não desprezo, pela elite política, jornalística e intelectual.»
Legenda: a ilustração deste e próximos Sublinhados Saramaguianos será feita com recortes dos Dossiers da Biblioteca da Casa sobre José Saramago.

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