sábado, 31 de maio de 2025

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Este nº 7 da Colecção que o Público, mensalmente, tem vindo a apresentar, é o catálogo de uma exposição itinerante inaugurada a 26 de Abril de 1975, na Galeria de Arte Moderna, em Lisboa.

O livro abre com uma citação de Mário Castrim:

«Para colher um cravo, desfolhou o nosso povo os pés nos tojos e nos cardos.»

Segue-se um texto introdutório de José Saramago, um outro de Ramiro Correia:

«48 anos de fascismo. 14 anos de guerras coloniais. 32% de analfabetos. 10% de população emigrada. Milhares e milhares de mortos e inválidos de guerra. Índices sanitários dos mais baixos da Europa. Problemas dramáticos de habitação. Economia desastrosa. Prestígio Internacional nulo. Repressão. Tortura. Censura. Corrupção.

Foi neste clima de tragédia que na madrugada de 25 de Abril o M.F.A. e o Povo iniciaram a árdua caminhada para a construção da sociedade socialista em Portugal.

Democratizar. Descolonizar. Desenvolver.»

OLHAR AS CAPAS


Portugal: Um Ano de Revolução

Coordenação: Espiga Pinto, Rogério Ribeiro

Introdução: José Saramago

Colecção 25 de Abril Os Dias da Revolução nº 7

Edição fac-simile A Bela e o Monstro/Rapsódia Final/Jornal Público, Lisboa Maio de 2025.

Vejamos agora o nosso próprio rosto nestes mil rostos fixados em instantes que são os primeiros da nova história portuguesa. Vejamos os soldados, os operários, os camponeses, as gentes das cidades e dos campos, ouçamos as gargantas abertas os gritos da Revolução. Vejamos o trabalho e a construção de tudo. Vejamos o ondular das bandeiras, os braços erguidos no ar, a força dos punhos, o cântico das imagens sobre a memória dos sons gigantescos das grandes caminhadas, É este o Povo Português enfim recolhendo e frutificando a herança dos oito séculos. Agora são as nossas verdadeiras Descobertas: este ser enfim o que tanto procurámos – Portugal.

Do texto de José Saramago

PANCADAS DE MOLIÉRE


Se a parte do cérebro que tem adormecida lhe permitisse, lembrar-se-ia quando começou a ser selectivo no que respeita ao cinema, ao teatro, aos livros, à música.

De certeza certa sabe que por um qualquer dia de Março de 1961, se sentou no Pavilhão dos Desportos em Lisboa, para ver teatro.

A Câmara Municipal de Lisboa, o SNI, patrocinava o “Teatro Popular de Lisboa” dirigido por Pedro Bom.

Não viu tudo, não leu tudo, não ouviu tempo mas consumiu tudo o que lhe viesse parar, aos olhos, aos ouvidos, às mãos.

Razão suficiente para estas Duas-Peças-Duas:

“O Morgado de Fafe em Lisboa”, comédia em 2 actos de Camilo Castelo Branco e “Falar Verdade a Mentir”, comédia em 1 acto de Almeida Garrett.

No programa poderia ler-se:

Espectáculo para maiores de 12 anos.

Haverá um intervalo de 10 minutos entre os 1º e 2º actos de “O Morgado de Fafe em Lisboa” e outro de 20 minutos entre esta peça e a comédia “Falar Verdade a Mentir”.

Encenações de Pedro Bom.

Apontamentos cenográficos e arranjos de cena de Mário Alberto.

Guarda-roupa gentilmente cedido pela Empresa Rey Colaço-Robles Monteiro.

Cabeleiras de Alberto Madureira.

Sonorização de Luís Moreira e Afonso Araújo.

Ponto: João da Silva.

Contra-regra João Leiria.

Actores que participavam nas duas peças: Carlos Costa, Fernanda Alves, Alexandre Vieira, António Anjos, Maria José, Ruy Mendes, Victor Ribeiro.

Actores que apenas participavam na peça de Camilo: Maria Albergaria, Mário Sargedas, Cândida de Lacerda, Roberto Viana, Manuel de Oliveira.

Na contracapa do programa, Luiz Francisco Rebelo situava historicamente as duas peças e os autores.

Notas à margem:

Imaginem as condições acústicas do Pavilhão dos Desportos para ver teatro.

Imaginem que o espectáculo começava às 21,45, havia meia-hora de intervalo, e calculem a que horas o espectáculo acabava.

Imaginem que ele descia, a pé, parte do Parque Eduardo VII, toda a Avenida da Liberdade para ir apanhar, ao Martim Moniz, o eléctrico para a Graça, que o deixava em Sapadores, e depois ia para casa, na Rua da Penha de França, não tinha a chave de casa, tocava à campainha, o pai abria-lhe a porta.

Imaginem que ele naquele tempo tinha 16 anos e daí a pouco, às 08,30, horas começava as aulas no Liceu Gil Vicente”.

Era feliz, sabe-o agora.

Sente hoje um arrepio gelado quando presencia uma enormidade de gente a proclamar, ufana, a sua incultura.

Sabe que os governantes deste país têm um soberano desprezo pela cultura.

O 25 de Abril já fez 52 anos.

Sempre é verdade que se envelhece!

Mas a Cultura nunca é um enfeite.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

NOTÍCIAS DO CIRCO

«A apresentação oficial da candidatura de Gouveia e Melo à Presidência da República mostrou, nas nossas televisões, uma vasta corte de aduladores do almirante, que faz lembrar as caricaturas queirosianas e camilianas do século XIX: um batalhão de burgueses bajuladores e um pelotão de políticos oportunistas que sentem ali o cheiro a poder e tratam de se mostrar rapidamente ao lado de quem parece estar à beira de influenciar muita coisa no futuro próximo deste país.

Um vídeo introdutório apresentou o candidato como sendo um homem “rigoroso” e “muito disciplinado”, o que é contraditório com tudo o que ele fez na aplicação dessa mesma disciplina e rigor aos marinheiros do NPR Mondego que recusaram cumprir uma missão, por o navio não estar em condições de navegar. Gouveia e Melo abriu processos disciplinares, depois de os humilhar publicamente frente às televisões, sem cumprir o rigor da lei, nem as regras da disciplina que ele próprio teria de cumprir para aplicar sanções a subordinados e, no final, passou pela vergonha de os tribunais anularem as suas decisões. Ele diz que se quer dar ao respeito, mas não respeita o que devia respeitar.»

Pedro Tadeu no Diário de Notícias

APANHADOS DO FACEBOOK

CARTA DE UMA MÃE ALENTEJANA

Mê querido filho,

Ponho-te estas poucas linhas que é para saberes que tôu viva.

Escrevo devagar porque sei que não gostas de ler depressa. Se receberes esta carta, é porque chegou. Se ela não chegar, avisa-me que eu mando outra.

O tê pai leu no jornal que a maioria dos acidentes ocorrem a 1 km de casa. Por isso, mudámo-nos pra mais longe.

Sobre o casaco que querias, o tê tio disse que seria muito caro mandar-to pelo correio por causa dos botões de ferro que pesam muito. Assim, arranquei os botões e meti-os no bolso. Quando chegar aí prega-os de novo.

No outro dia, houve uma explosão na botija de gás aqui na cozinha. O pai e eu fomos atirados pelo ar e caímos fora de casa. Que emoção: foi a primeira vez, em muitos anos que o tê pai e eu saímos juntos.

Sobre o nosso cão, o Joli, anteontem foi atropelado e tiveram de lhe cortar o rabo, por isso toma cuidado quando atravessares a rua.

Na semana passada, o médico veio visitar-me e colocou na minha boca um tubo de vidro. Disse para ficar com ele por duas horas sem falar.

O tê Pai ofereceu-se para comprar o tubo.

A tua irmã Maria vai ser mãe, mas ainda não sabemos se é menino ou menina. Portanto, nã sei se vais ser tio ou tia.

O tê irmão Antóino deu-me hoje muito trabalho. Fechou o carro e deixou as chaves lá dentro. Tive de ir a casa, pegar a suplente para a abrir. Por sorte, cheguei antes de começar a chuva, pois a capota estava aberta.

Se vires a Dona esmeralda, diz-lhe que mando lembranças. Se nã a vires, nã lhe digas nada.

Tua Mãe Maria

PS: Era para te mandar os 100 euros que me pediste, mas quando me lembrei já tinha fechado o envelope.

Desculpa a minha lêtra, mas eu tenho andado muito rouca.

Colaboração de Aida Santos

DISTO, DAQUILO, DAQUELOUTRO


Não sei se vem a propósito, seja do que for, mas lembrei-me do Fernando Pessoa: “Pertenço a um género de portugueses que depois de estar a Índia descoberta ficaram sem trabalho.” ...

Ontem, Gouveia e Melo fez a apresentação da futura (?) ocupação do lugar de presidente em Belém.

Numa cerimónia completamente pífia, num discurso cheio de banalidades e lugares comuns («um país onde os jovens tenham futuro, onde os mais velhos descansem com dignidade, onde ninguém seja pobre por destino ou falta de oportunidade, onde saúde, habitação e educação sejam direitos e não privilégios, onde a cultura seja central e onde o ambiente seja um compromisso entre gerações»)., marinheiro que foi, acabou a lembrar os mares outrora nunca navegados.

Politicamente não referiu quase nada o que o transforma numa incógnita. Pode ser que até Janeiro do ano que vem, coloque mais qualquer coisinha na bagagem.

Também ontem, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou à nação que aquele, que considerou um rural a viver em Espinho, será o novo primeiro-ministro.

Falando aos portugueses, as banalidades do costume, garantiu que, Luís que é, pretende continuar a trabalhar.

Apenas faltou o coro daquela rapaziada que o acompanha diariamente.

1.

O presidente «daquela coisa» continua a afirmar que Portugal é um país de corruptos.

A Procuradoria-Geral da República informou esta quinta-feira que foram constituídos 12 arguidos na sequência das buscas realizadas pela Polícia Judiciária em vários pontos do país visando empresas e organismos públicos relacionados com um alegado "cartel" em contratações de meios aéreos para o combate aos incêndios rurais.

De acordo a PGR, foram constituídas arguidas sete pessoas singulares e cinco pessoas coletivas, acrescentando que o processo continua em investigação e em segredo de justiça.

Entre os suspeitos há dois generais e um tenente-coronel, todos já aposentados.

E um dos arguidos é empresário financiador «daquela coisa».

2.

« A forma como o escândalo do dermatologista que ganhou uma fortuna em uns poucos sábados de trabalho extra frutificou, dentro de uma instituição como o Hospital Santa Maria e em todo o sistema, sem reais mecanismos de controlo a funcionar, mostra como o SNS tem sido deixado ao abandono. Mostra a desconexão da gestão hospitalar com o fluxo do dinheiro. Uma vergonha que a todos embaraça e compromete o futuro. Afinal, para que serve a política, se não serve para acabar com esta irresponsabilidade.»

Eduardo Dâmaso no Correio da Manhã

3.

A taxa de mortalidade infantil em Portugal subiu 20% em 2024 face ao ano anterior em que a região da Península de Setúbal regista o valor mais elevado, com uma taxa de mortalidade infantil de 3,7 por cada mil nascimentos, acima da média europeia.

4.

Em Dezembro de 2024 residiam em Portugal 1,5 milhões de estrangeiros;  a população empregada em Portugal chegou aos 5,18 milhões.

5.

Segundo o tal semanário que, por vezes se engana, o governo admite gastos de 5% em Defesa, que Luís Montenegro dizia "inexequível", mas que Trump exige que assim seja. 

ERVA ESPEZINHADA...

 erva espezinhada poeira de sal nas unhas

dedos cansados de escutar o envelhecido latejar das pedras
olhar vago rasando o mar… azulino pássaro
no vagar do vento vem abrigar-se no meu peito
 
e o sol queima por dentro a boca e os cabelos
escolho um nome… ofereço-to
enquanto esboço percursos na ilusão de te reencontrar
mas deparo com estas dunas tristes… aridez contínua
ao longe
figueiras bravas debruçam-se para os corpos
protegendo-os do calor… onde terminará a visão?
 
teço nos lábios a líquida alegria dum fabuloso peixe
ouço o marulhar das estrelas… lembras-te?
ao anoitecer
 
     (resumo do dia:
                    chuviscos
                    breves dálias colhidas nos valados
                    passos hesitantes pelas águas
                    lenta fuga dos corpos
                    sombras ternas na folhagem das figueiras)
 
estendidos na erva para

 
 
Al Berto

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Lá para o sul, há um país que dá pelo nome de Alentejo.

Este é um livro que fala do Alentejo ou de quem gosta muito de morrer.

Tenho guardado, há longo tempo, uma história de que não lembro o autor, tão pouco o sítio de onde a tirei:

«Passou a santa vida a beber copos de cinco, no balcão de pé. Mesmo tendo todo o tempo do mundo – como gostava de arrematar – nunca o viram sentado na taberna. Dizia que gostava de estar à altura do momento. E ria-se, ria-se escancaradamente de si mesmo enquanto cismava que afinal, era um homem para consumo próprio.

Estimava igualmente sublinhar que, em coerência com o consumo, era também dono de si próprio.

E assim parecia ser. Corria à boca cheia que sempre que um patrão o tentou abeirar do vexame ou da desfeita: despediu-se. Alardeava depois que não eram só os balcões que o conheciam de pé!

Como não tinha paciência para usar a vida a meias, permaneceu solteirão. Quando a velhice tentou empurrá-lo para a dependência do lar da misericórdia, bradou: serei até ao fim eu o meu único dono. Suicidou-se, igualmente de pé!

(Desaforadamente, depois de morto, a estatística usou-o como mero número para informar que o Alentejo é região contumaz no topo de suicídios.)»

No seu Diário, Miguel Torga tem esta frase:

«Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque não o degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.»

Na contra capa pode ler-se que os factos verdadeiros são os piores.

Mas que factos?

«Faz calor na província dos suicidas. Dá vontade de rir: uma cidade em que até o coveiro se mata… São estatísticas, tudo em números.»

Ou como disse o poeta Mário de Sá Carneiro: «um pouco mais de sol - eu era brasa.» 

OLHAR AS CAPAS

E Se Eu Gostasse Muito de Morrer

Rui Cardoso Martins

Capa: V. Tavares

Edições Tinta-da-China, Lisboa, Março de 2016

Um jogo de futebol, como sabes, deve jogar-se sábado de manhã, no momento mais agudo da ressaca, se possível de directa. Só assim faz efeito o ar puro, e deve-se correr sem aquecer os músculos, porque a saudável é vomitar antes do intervalo. Vem o intervalo e fuma-se um cigarro, sabe melhor com os alvéolos abertos, o fumo é cicatrizante, é das boas coisas do vício, e o primeiro a acendê-lo acho que foi o Trombeiro ou o Tonel ou talvez o Besta Porca. O Pardoca, acho, ou o Banana, um deles tinha chutado a bola para fora num corte que levantou uma rajada de pedrinhas e esfolou a canela do Perneta.

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


«Netanyahu está a empurrar um país que tinha a solidariedade das democracias, e do mundo em geral, para um beco sem saída. Está a transformar Israel num estado quase pária por causa de Gaza», escreve, no Público de hoje, a jornalista Teresa de Sousa.

Chegaremos um dia a saber o número de mortos, de feridos, de estropiados, de desaparecidos, de deslocados.

Saberemos.

Mas em saber os números, mesmo que exactos não sejam – mas para quê os números!? - sabemos que, em Gaza, há gente a morrer de fome, de sede, sem tecto entre ruínas, perante o silêncio internacional , principalmente duma Europa que apenas tem olhos para a Ucrânia.

Os israelitas destroem escolas e hospitais em Gaza porque entendem que por lá se esconde gente do Hamas.

Terrível, dramático, mas já não há palavras para em pleno século XXI classificarmos este odioso crime.

Se isto não é um genocídio, então o que é um genocídio?

ARUSPICISMO

 numa sondagem da opinião pública

                  apurou-se que

               a opinião pública

   coincide com a opinião pública

                  e considera

                        que

          a única opinião pública

    autorizada pela opinião pública

                          é

       a verdadeira opinião pública

                             isto

                      ao contrário

                          do que

             pretende fazer crer

            certa opinião pública

                        a qual

                    não coincide

com a verdadeira opinião pública

 

Alberto Pimenta em Poesia 71

quarta-feira, 28 de maio de 2025

POSTAIS SEM SELO


O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas avançou que "uma multidão de pessoas esfomeadas" invadiu um dos armazéns de alimentos da ONU no Centro na Faixa de Gaza na tarde desta quarta-feira, 28 de Maio, depois de um bloqueio total de quase três meses imposto por Israel ao território ter agravado a fome e uma situação humanitária já catastrófica. Pelo menos quatro pessoas morreram, esmagadas ou baleadas, e várias ficaram feridas.

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO


 Carta de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, 14 de Março de 1916 :

«Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental — uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.

Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.

Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio, amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

As últimas noticias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.

De que cor será sentir?

Milhares de abraços do seu, sempre muito seu

Fernando Pessoa

P. S. — Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histeroneurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tão características...

Você acha-me razão, não é verdade?»

1.

Cada vez mais pessoas em situação de sem-abrigo procuram as urgências hospitalares em busca de um teto, alimentação, higiene, entre as quais imigrantes e moradores que perderam a casa ou o quarto onde viviam por dificuldades financeiras.

2.

Odeiam trabalhadores.

Greve na CP.

Tiveram todo o tempo para resolver as justas reivindicações dos trabalhadores.

Ocuparam os seus tempos em tratar dos assuntos dos homens do dinheiro.

Agora dizem que os trabalhadores são uns ingratos, uns irresponsáveis por terem marcado greves para o tempo de eleições…

Ouvir Luís Montenegro, com o seu cínico sorriso dizer: "um dia, temos de pôr cobro a isto!", é de de colocar um cidadão no limiar do vómito.

Ver/Ouvir aquele ministro da tutela, Miguel Pinto Luz, completamente histérico: «Isto é política partidária, eleitoral que o Governo fez "tudo para evitar" a paralisação.

O pretexto para, mais uma vez, se atacar o direito à greve é a paralisação de comboios provocada pela adesão a uma série de paragens convocadas por 16 organizações sindicais da CP, umas filiadas na CGTP-IN, outras na UGT, outras sem filiação em qualquer central sindical.

3.

«É o imigrante mais antigo que recusa admitir direitos aos novos imigrantes; é o trabalhador mal pago que acredita que os pobres que recebem subsídios o estão a extorquir; é o branco que não aceita ver os negros fora dos musseques; é o homem macho que não suporta que as mulheres ganhem poder.

Em 50 anos de Democracia fizemos muito, mas muito ficou por fazer. Faltou educar a sociedade na ideia de cooperação entre todos e de abertura aos outros, e de uma saudável desconfiança em pregadores fáceis que vendem ilusões com os nossos ressentimentos. Não seremos capazes de reconhecer no que falhámos?

Pensar no que podemos e devemos fazer para contrariar esta deriva ideológica e moral em que vivemos, levar a nossa capacidade crítica ao fundo dos problemas criados, compreender que ser radical é ir à raiz dos problemas e que não o ser é colher passivamente os frutos que deixámos semear, é isto o que se pede aos responsáveis políticos. E tudo o resto será chover no molhado.»

Luís Filipe Castro Mendes no Diário de Notícias.

4.

Por fim

Alguém um dia afirmou que um canal de televisão tanto pode vender sabonetes como presidentes.

Interessante o artigo de Bárbara Reis no Público de hoje:

«João Pinhal, da Universidade Nova de Lisboa, trouxe luz para o debate sobre papel dos media na ascensão do Chega.

Pinhal, que tem 20 anos, contou, uma a uma, todas as entrevistas que as televisões públicas e privadas fizeram ao líder do Chega, André Ventura, e ao líder do PSD, Rui Rio ou Luís Montenegro, entre Outubro de 2019 e Junho de 2024 (este período inclui os primeiros meses de Montenegro como primeiro-ministro).

Os números dos 57 meses desde que Ventura foi eleito pela primeira vez mostram que o líder do Chega deu 61 entrevistas e o líder do PSD deu 42. Os números falam por si:


SIC+SIC Notícias: 15 entrevistas a Ventura; nove ao líder do PSD.

 

TVI+ TVI24+CNN: 29 a Ventura; 17 ao líder do PSD.

 

CMTV: 12 a Ventura; seis ao líder do PSD.

 

RTP e RTP3: cinco a Ventura; dez ao líder do PSD.

Estas são entrevistas a sós, em estúdio, ou com Ventura convidado para debater ou comentar algum tema da actualidade. Excluem os debates das campanhas eleitorais.
A principal responsabilidade pela ascensão do Chega é do Chega, que vende soluções fáceis embrulhadas em mentiras e ódio. Mas os media, em particular as televisões, não podem sacudir a água do capote.»

À LUPA


Que Nações Unidas? Que Direitos Humanos?

Gaza é o marco do nosso tempo.

As nossas crianças querem brincar e rir.

Não há solução militar.

Há muitos anos, um oficial israelita veio à aldeia e perguntou a um velho  desde quando aqui estava. E o velho respondeu: bem, Adão passou por aqui a ver se eu tinha visto Eva.

Palavras encontradas em Gaza Está em Toda a Parte

OLHAR AS CAPAS


Barbear, Pentear

(Jornal d’Um Vagabundo)

Fialho d’Almeida

Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1923

Ha muito tempo que o serviço das bibliotecas e archivos devia ter sido reformado por pessoa capaz de vêr lucidamente a questão do ensino público, e uniformizado e reduzido a um instrumento commodo e facil de cultura. Vejam a lastima das bibliotecas de Lisboa. Por exemplo, na principal, faltam os livros de quasi todos os escriptores nacionais contemporâneos; e da encyclopedia moderna de frança, Inglaterra, Alemanha, etc., tanto em jornaes como em volumes, tesouro de gerações estudiosas, e que nenhum homem modernamente educado deixa de consultar todos os dias, a biblioteca de Lisboa não possue senão meia duzia de volumes, adquiridos sem plano  nem conhecimento da classificação scientifica, ao acaso das vitrines dos livreiros – pois é tão pobre que tem de pedir um extraordinário ao ministério de cada vêz que paga ás mulheres que sacodem os livros e desempoeiram as estantes (!!).

NÃO SABES DAS COLINAS

Não sabes das colinas
onde se verteu o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós abandonámos
a arma e a honra. Uma mulher
olhava-nos enquanto fugíamos.
Só um de entre nós
estacou, de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
É agora um farrapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera por nós nas colinas.
 

                 9 de Novembro de 1945
 
 Cesare Pavese em Virá a Morte e Terá os Teus Olhos

terça-feira, 27 de maio de 2025

À LUPA


Nos dias desesperantes que se vivem em Gaza, e há quantos e quantos anos assim se vive por ali, tempo  para o possível pão. 

Ao mesmo tempo que o genocida Netanyahu continua a planear tudo arrasar para fazer nascer uma qualquer riviera.

José Saramago lembrava que Quando a minha avó acabava de amassar o pão, dizia sempre, depois de traçar uma cruz na massa: Deus te ponha a virtude, que eu fiz o que pude.

José Pacheco Pereira lembra o estado de maior indignação que o invade pelo que se passa em Gaza e diz:

«Só conheço uma comparação para esta indiferença, vergonhosa e também, ao mesmo tempo, a mais certeira e, num certo sentido, a mais diabólica: o encolher de ombros de todos os que sabiam que o Holocausto estava em curso –​ e havia muitos altos responsáveis entre os inimigos dos alemães que sabiam – e nada fizeram.» 

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Já mais de uma vez disse, que não irei ter tempo para aqui colocar todos os livros da Biblioteca da Casa.

O livro de Sebastião Salgado, publicado em Fevereiro de 1967, oferta do meu amigo António Abaladas, na Primavera desse mesmo ano, com palavras que dizem: «Imperdível. É saber viver a utupia e não deixar estragar a “Festa”», encontra-se no Outro Lado das Estantes e aguardava vez para ser colocado. Lamentavelmente, chega hoje por um muito triste motivo: Sebastião Salgado, o fotógrafo que gravou em película a desumanidade dos que, apesar de tudo, teimam em sobreviver, deixou-nos há alguns dias.

Para epígrafe do admirável texto que para este livro, também admirável, escreveu, José Saramago foi buscar versos do extraordinário poema de João Cabral de Melo Neto: Vida e Morte Severina

 

«É difícil defender
só com palavras a vida
(ainda mais quando ela é 
esta que vê, severina).»

 

Sempre gostei de fotografia. Aos 15 anos tirava fotografias numa Kodak de brincar. Outras máquinas fui tendo nas faltou-me sempre aquele toque de voo de pássaro que pudesse fazer diferenças.

Luís Eme, registando, no seu Largo da Memória, a morte de Sebastião Salgado, escreveu:

« O desaparecimento de Sebastião Salgado é um bom motivo para falar de fotografia, como arte, mas também como objecto de denúncia, de clarificação, porque o que ele mais gostava de retratar era um mundo desigual e devastador, graças à acção do homem, mas sempre a perseguir a diferença, a encontrar beleza mesmo no "inferno".

Penso que ele chegou onde mais ninguém foi (muitos nunca quiseram ir por aí, até por uma questão de filosofia de vida e do entendimento que tinham da imagem). Onde havia exploração, escravidão, devastação, miséria, ele foi lá, e tirou retratos a tudo e mais alguma coisa, sem estar preso a questões éticas e morais.

No meu caso pessoal, devo dizer que a partir de certa altura, comecei a desinteressar-me pela sua fotografia. Senti que aquilo era tudo muito igual, ou seja, ele já não me surpreendia com a beleza das suas imagens. 

Acho que isso aconteceu quando entrei mais dentro da fotografia. Fui educando o meu olhar, através da prática da fotografia e também de conversas com amigos fotógrafos (as conversas influenciam-nos muito, mesmo sem darmos por isso...), comecei a achar que as imagens de Sebastião eram demasiado encenadas. Até mesmo a miséria humana, não me parecia real, entre outras coisas, mesmo que o fotógrafo brasileiro tivesse sempre a arte como prioridade, no seu olhar...

É por isso que eu digo que a fotografia com Sebastião Salgado, ganha uma beleza única (os seus cinzentos são uma marca...), mas também se torna complexa, enquanto objecto social...»

OLHAR AS CAPAS

Terra

Sebastião Salgado

Texto de Introdução: José Saramago

Versos: Chico Buarque

Capa: Lélia Wanick Salgado

Editorial Caminho, Lisboa, Fevereiro de 1997

Cabral de Melo Neto

Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a ideia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto e depois não ter Deus em quem mandar.

Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar –  as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

NUNCA MAIS À INFÂNCIA REGRESSAREMOS

Nunca mais à infância regressaremos.

Troquemos de lendas, mitos, ideais.
Troquemos de tormento, de pulsação
felina, de borzeguim e gravata. Perdemos

a memória e sinapses na separação
do conhecimento em luz que
decompusemos,
mestre, entre teu jardim e os demais.

Nunca mais à infância regressaremos.

Troquemos de pontas de fogo,
troquemos de contas de vidro,
troquemos de contas de vidro...

 

Paulo da Costa Domingos

segunda-feira, 26 de maio de 2025

SEBASTIÃO SALGADO (1944-2025)


 Morreu o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE


 A crónica de Ana Cristina Leonardo no Ipsilon de sexta-feira, como habitualmente, tem muito interesse.

A pergunta é:

Se os algarvios tivessem um hospital decente, os resultados eleitorais manter-se-iam os mesmos?

E a cronista adianta:


«Tudo começou lá muito atrás, era 2002 (vá lá, já foi no século XXI). Primeiro veio o despacho, um ano depois o mesmo ministro aprova a escolha do terreno; ainda em 2003 é celebrado um Acordo Estratégico, seja lá isso o que for. Em 2004, é a quinta prioridade dos hospitais a construir pelas parcerias público-privadas. Em 2005 há novo estudo e em 2006 passa a segunda prioridade. No mesmo ano, nomeiam-se grupos de trabalho em barda. 2007: mais despachos. 2008: preparação do concurso e apresentação pública do novo hospital (uf!). Refreie-se o optimismo! Chega 2009 e mais um despacho. 2010: seleccionam-se duas propostas e em Setembro “inicia-se a fase de negociação, que ainda decorre” (sic).

Isto, podendo não ser gozar com quem trabalha, é decerto gozar com quem está doente.»

Mais um pedacinho da crónica:

«Se apelidar alguém de gordo pode ser interpretado como discurso de ódio, se questionar a participação de mulheres trans em competições desportivas femininas pode ser (e geralmente é, que o diga J. K. Rowling…) visto como transfobia, se recusar a chamada linguagem inclusiva que multiplica casos e casinhos pode ser entendido como discriminatório, se optar por usar a palavra deficientes em vez da designação pessoas com deficiência pode ser lido como prova de insensibilidade, se contar uma piada passou a ser razoável apenas e só se a piada não ofender ninguém, se… se… se… Já aparecer nas televisões e nos jornais a afirmar mentirosamente (desmentido pelos serviços hospitalares e pela PSP) que os ciganos o queriam matar, ou a expressar ideias boçais que nem na taberna de Eco, como fez o deputado Pedro Pinto (Deputado! Por Toutatis!) — “Não podem querer que André Ventura vá para uma cama onde ao lado esteja, por exemplo, alguém de etnia cigana” — passou a ser admissível e, além de admissível, aceitável.
Repare-se, porém, no detalhe (e o Diabo, é sabido, está nos detalhes): Pedro Pinto, recorrendo, até ele, e apesar da boçalidade, ao politicamente correcto — um entendimento linguístico que nos conduziu à ideia de que é possível mexer na merda sem sujar as mãos… —, não diz ciganos, diz alguém de etnia cigana. É o progresso!»

OLHAR AS CAPAS


História da Filosofia Ocidental

Bertrand Russell

Tradução: Vieira de Almeida

Posfácio e Notas: Rogério Fernandes

Livros Horizonte, Lisboa s/d

Nada mais surpreendente e difícil de explicar em toda a história do que a súbita ascensão da civilização grega. Muito do que constitui a civilização já existia milhares de anos no Egipto e na Mesopotâmia e irradiava para países vizinhos. Mas faltavam elementos até que os gregos os encontraram. O que fizeram em arte e literatura é bem conhecido, mas o que fizeram no campo intelectual é ainda mais extraordinário. Inventaram  a matemática, a ciência e a filosofia, escreveram pela primeira vez história em contraposição com simples anais, especularam livremente sobre a natureza do mundo e os fins da vida, sem a prisão de qualquer ortodoxia herdada. O que foi tão surpreendente que até época muito recente os homens se contentavam com admirar e falar misticamente do génio grego. Mas é possível compreender o desenvolvimento da Grécia em termos científicos e vale bem a pena fazê-lo.

MAIO DE MINHA MÃE

O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.

Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)

A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas

Muito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
Favas de Maio do meu tempo!
Havia poder popular
Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores
E flores eram de si, na flórea abada
Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor
Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor
(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada.

 

Vitorino Nemésio

domingo, 25 de maio de 2025

À LUPA


É domingo e a Lupa voltou a deslizar sobre o poema Estudo do Rosto de Tiago Araújo,  poeta, músico, uma mistura de realismo e surrealismo, de densidade e simplicidade, de beleza e aspereza, vai dizendo que o afecto é muito maior do que se possa imaginar.

«coleciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas

por pouco dinheiro, como prova de que estamos

a uma ou duas gerações do esquecimento,

invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,

espalho-as em molduras  pela casa para confundir visitas

e de me vingar de uma memória que me atraiçoa sem descanso

OS CLÁSSICOS DO MEU PAI


Charles Aznavour.

Nasceu em Saint-Germain-des-Prés no dia 22 de Maio de 1924, filho de imigrantes arménios que eram artistas de teatro.

Se ainda andasse por aqui, a encantar-nos, teria feito 101 anos.

Terá composto mais de 850 canções, algumas imortais, vendeu mais de 200 milhões de discos,

O meu pai gostava muito de Charles Aznavour.

Duas canções em particular: La Mamma e La Bohéme.

Para além do começo de Thais do Anatole France: «En ce temps-là le désert etait peuplé d’anachorètes.», nas conversas que mantinha, introduzia frases. Uma delas era um provérbio francês «Si jeunesse savait, si vieillesse pouvait», também uns versos de Baudelaire que referiam que no fundo das garrafas vazias fica sempre uma certa tristeza.

O meu pai, de uma certa maneira, foi  um boémio, e pegando na frase que amiúde citava , se o novo soubesse e o velho pudesse, talvez o remetesse para a canção do Aznavour, La Bohéme, de que muito gostava, aliás Aznavour considerava a sua melhor canção: porque falava de uma época que os mais jovens não podiam conhecer, quando Montmartre tinha lilases pendurados nas janelas e, se na maior parte dos dias não tinham de comer isso não os deixava de acreditar, ser-se jovem, ser-se louco.


OLHAR AS CAPAS


O Cavaleiro da Esperança

(Vida de Luís Carlos Prestes)

Jorge Amado

Publicações Europa- América, Lisboa, Novembro de 1976

Um dia, amiga, te narrarei o resto desta história. No dia da liberdade, quando o Herói partir novamente no seio do povo para a festa da democracia. Te falei dele nos dias da luta, de triunfo, de exílio e de sofrimento. Te disse da sua grandeza, do seu génio, do seu heroísmo. E, agora que o conheces, jamais o desespero habitará o teu coração por mais densa que seja a noite da tirania. Sabes que em breve despontará o amanhã da liberdade. Quando ele e o povo romperem as cadeias e partirem. Iremos com eles, negra, será uma festa, cordial e alegre, a liberdade e o amor.

sábado, 24 de maio de 2025

À LUPA


«…o problema não é como o incêndio começa, é porque é que ele não pára».

Henrique Pereira Santos, paisagista

POEMAS AUTOGRAFADOS


 Estamos com o nº1 da Colecção Poetas de Hoje editados pela Portugália Editora: Os Poemas de Álvaro Feijó.

O prefácio do livro é de João José Cochofel e ambos são velhos amigos e formados na escola neo-realista onde tiveram a companhia, entre outros, de Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado.

Álvaro Feijó morreu muito novo, tinha 24 anos quando morreu em 1941.

Escreve Cochofel:

«Fantasia e realidade constituem os ingredientes indissociáveis da poesia de Álvaro Feijó, que era daqueles poetas que de tudo arrancam poesia, dos pequenos nadas, dos miúdos acontecimentos do dia a dia, até de uma simples notícia de jornal, das emoções pessoais como dos factos observados, que a sua visão exercitada capta e que o seu  adestramento formal sabe fixar com uma fidelidade que raro entra em conflito com a riqueza poética da expressão.»

Esta frase sublinhei-a no prefácio de Cochofel, razão mais que suficiente para que a poesia de Álvaro Feijó tivesse uma entrada significante no jovem que então estava a desbravar os novos poetas portugueses que ele desconhecia por completo.

 

«Mas se cantares a rua, a fome, o sofrimento,

se abrires os olhos sobre o nosso mundo,

se conseguires que toda a gente o veja

e o sinta, e sofra, só de ver sofrer,

ninguém se lembrará de ti poeta,

mas terás feito a tua luta,

e nela,

justificado uma razão de ser.»

 

O poema que Álvaro Feijó escolheu para deixar o seu autógrafo, é:

 

LARGADA

 

«33…35…Rumo ao Norte»!

 

Só isto! Nada mais!

 

E isto quer dizer

a saudade do cais

que se perdeu de vista;

o Mar que se conhece braça a braça

por outro mar sem fundo;

as praias onde andara em pequenino

pelas do Cabo do Mundo,

geladas e tristes;

a mulher possuída realmente

pela mesma mulher

que se quer

e se não tem,

e a voz dum filho nu – continuamente –

debruçado do cais

a pedir pão!

 

- «33… 35… Rumo ao Norte».

 

Só isto! Nada mais!

Julho de 1940

TEMPO DE MORANGOS


Não há tempo de morangos que não lembre o episódio.

O sabermos sempre que as mãos não bastam para um tempo de morangos, mãos entre sorrisos, entre palavras.

Durante quase dois anos ajudei uns amigos que tinham um restaurante que agarraram quando a empresa em que trabalhavam foi à falência. Trabalho árduo. Eu fazia as compras, dava outros pequenos apoios.

Para as compras ia à loja de um chinês na Avenida Almirante Reis, mesmo em frente do Banco de Portugal, a dois passos de um super Auchan.

Uma manhã, dei para armar em chico esperto:

- Ouve lá, tu vendes-me os morangos mais caros que ali o Auchan…

O chinês parou de arrumar as frutas, olhou-me serenamente, tudo embrulhado num sorriso milenar, celestial mesmo, e disse:

-Pode ser que sim!... Mas eu escolho-te os morangos… Tu compras uma caixa no Auchan e metade estão podres ou a caminho disso…

Olhei o chinês, sem ponta de celestial, com uma vontade maluca de me enfiar chão abaixo. Cumprimentei-o, acabámos a gargalhar, com um então até amanhã.

OLHAR AS CAPAS


Caetés

Graciliano Ramos

Ensaio de Interpretação: Floriano Gonçalves

Capa: Santa Rosa

Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, Janeiro de 1947

Adrião, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de uma forte dor de cabeça. E dispunha-se a sair, porque sentia acanhamento e não encontrava assunto para conversar.

Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada:

- O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu…

Não pôde continuar. Dos olhos que deitavam faíscas, saltaram lágrimas. Desesperadamente perturbado, gaguejei tremendo:

- Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice.

- É bom que se vá embora, gemeu Luísa com o lenço no rosto.

- Foi uma tentação, balbuciei sufocado, agarrando o chapéu. Se a senhora soubesse…Três anos  nisto! O que tenho sofrido por sua causa…Não volto aqui. Adeus.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

REOLHARES


Cheguei um tanto ou quanto atrasado à leitura de Herberto Helder.

Desconhecia-o.

Mas fui coleccionando recortes dos suplementos literários, no tempo em que os jornais publicavam esses suplementos, quase todos às quintas-feiras.

Ao mesmo tempo fui comprando os seus livros que não foram lidos de imediato.

Tudo muda num repente, quando num suplemento literário do Diário Popular s/d leio Luna Levi perguntar, ao seu sábio irmão M.R., se já tinha lido o último livro de Herberto Helder que era o Photomaton & Vox.

E explica:

«Devorei-o de um fôlego, num acesso de bebedeira deslumbrada.»

Comprei hoje a Biografia de Herberto Helder – Se Eu Quisesse, Enlouquecia – 895 páginas escritas por João Pedro George e ocorreu-me aproveitar a rubrica REOLHARES para lembrar o que aqui se escreveu, a 24 de Março de 2015, sobre a morte de Herberto Helder.

Da Biografia falaremos um destes dias.

Corria o Natal de 1970 e eu encontrava-me na Livraria Portugal à procura de um livro para oferecer a mim mesmo.

Herberto Helder apenas o conhecia de nome, referido nos suplementos literários que, uma vez por semana, os jornais publicavam.

A capa colorida da 3ª edição de Os Passos em Volta de Herberto Helder, publicado pela Editorial Estampa, chamou-me a atenção.

Peguei-lhe e os olhos caíram logo nas palavras iniciais.

Gosto imenso de começos de livros. Nem todos ficam para a minha história.

Este ficou.

- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade enorme de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio.

Herberto Helder morreu ontem.

Tinha 84 anos.

Fugia de holofotes, multidões, mediatismos.

Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pela sua obra que, segundo o júri, iluminava a língua portuguesa.

Uma pipa de massa para quem tinha uma reforma curta.

Mas Herberto Helder recusou a distinção.

António Alçada Baptista e Clara Ferreira Alves, em nome próprio e do Expresso, tentaram demovê-lo.

Conta o Alçada Baptista:

O Herberto estava na sala. Falou à Clara e depois a mim.

Eu disse, meio a brincar meio a sério:

 - Vimos numa difícil missão...

Ele, com toda a simplicidade dele, disse-me logo que não, calculando que era um prémio.

Não foi possível demovê-lo e sentimos que aquilo era tão fundo e tão importante para ele que não devíamos insistir. Ele disse:

- Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro...

- Não pode ser, o júri escolheu-te a ti, a decisão está tomada; respeitamos que digas que não...

Ele ainda acrescentou:

- Peço que sejam meus mandatários e digam ao júri que eu agradeço mas não posso aceitar.

Eu queria transmitir bem que não havia aqui nenhuma arrogância: a sua recusa não era contra ninguém. Era uma decisão do seu eu mais íntimo, que logo nos mereceu o maior respeito.

Eu só lhe disse: 

- Eu já gostava de ti e vi agora que é possível ainda gostar mais.

Em Julho do ano passado publicou o seu último livro.

O título diz tudo: Morte Sem Mestre.

Um escritor como Herberto não necessita de palavreado encomiástico.

Porque sempre o considerou inútil e perene de hipocrisia.

Não gostava de dar entrevistas, nem de se deixar fotografar.

Foi um Natal feliz aquele de 1970.

Gosto de poetas misteriosos.

Gosto de autores que não consigo entender.

Sempre passos em volta.

Em volta sabe-se lá de quê.

Maria Teresa Horta:

Quantas vezes me prendi eu nas malhas envolventes da poesia de Herberto Helder e senti medo de não ser capaz dos seus poemas.

Luna Levi sobre Photomaton e Vox:

Devorei-o de um fôlego, num acesso de bebedeira deslumbrada.

É suficiente.

O resto é pegar nos seus livros.

Alguns de há muito esgotados.

Mas, certamente, irão ser reeditados.

Não os percam!