quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

QUOTIDIANOS


Costumava ir ao cemitério visitar a minha mãe mas, por não ter a certeza de qual era a campa, dado não existirem lápides naquele talhão, apenas números na ponta de hastes de ferro, sentava-se por ali, numa saliência a jeito, e ficava a olhar a terra e as árvores ou um dos cachorros que, de quando em quando, passavam por ele, a murmurarem, seguindo um fio de cheiro lá deles. Ao longe oliveiras e, mais longe, depois de um murozito, uma ou outra ruína antes do mar. A mãe devia estar por perto, muito calada, sob um dos tufos de ervas ou, se calhar, era agora um tufo de ervas que às vezes suspirava com o auxílio do vento. Aos setenta anos tanto lhe fazia, mas sentia-se quase eterno a imaginar que a escutava. Trazia uma garrafa no bolso da gabardine, destinada a acompanhá-lo se por acaso uma névoa de desconforto lhe arrepiasse o estômago. Não chegava a beber porque as ervas não pronunciavam o seu nome. À esquerda oliveiras em lugar de choupos, um ou dois corvos junto às vacas numa encosta. As vacas não pastavam, quietas desde ele pequeno, desde há séculos, as mesmas da sua infância, de pestanas brancas, com os tendões do pescoço a baloiçarem. A mãe costumava dar-lhe café quando a visitava. Tinha o retrato de um homem de barba em cima de um caixote, amparado a uma boneca a que faltava um dos braços.

António Lobo Antunes,  de uma crónica publicada na Visão.

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