sábado, 7 de janeiro de 2012

GRITAR LOBO


continuei a regressar ao lugar onde me habituei a gritar lobo até muito depois de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do medo extintas com cobertores e alguma companhia – com uma presença recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a dissimular por motivos profissionais, antigos uniformes militares desenhados com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio. nessa época , só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. Sei que haveria uma lição retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.

Tiago Araújo no Público, 10 de Dezembro de 2011

Legenda: pintura de Edward Hopper

Sem comentários: