Por norma os fins-de-semana são dias parcos em notícias, os políticos os fala-barato, vão arejar e, apenas ficam as outras notícias, normalmente mortes outras tragédias, por vezes, um acontecimento feliz.
É um tempo propício para colocar à janela o que, nos últimos dias fui lendo pela concorrência.
Sara Figueiredo Costa, no seu Cadeirão Voltaire, faz uma bonita evocação, sobre o fecho da Livraria Portugal:
Nunca vi Natália Correia ao vivo, mas tenho dela uma imagem muito nítida, de cigarro na ponta de uma enorme boquilha, cabelo armado e os gestos fulgurantes a pontuarem uma fala segura e sonora. Encostada ao balcão da Livraria Portugal, Natália Correia perorava sobre a poesia portuguesa, enquanto os clientes da casa, muitos deles escritores, ouviam e rebatiam, ou fingiam não ouvir. É uma memória muito definida, tão definida que não é minha, apesar de integrar sem risco de falsidade maior do que tantas outras o meu acervo pessoal de memórias. É uma memória da minha mãe, que eu ouvi tantas vezes e que imaginei com tanta dedicação que passou a ser minha. E era uma memória da minha avó, caixa na Livraria Portugal durante muitos anos. Na verdade, a Livraria Portugal, onde só entrei mais tarde, quando comecei a vir para Lisboa sozinha (é uma espécie de ritual de passagem suburbano, vir a Lisboa de modo independente), forneceu-me muitas memórias como esta, episódios a que não assisti mas que se colaram ao meu imaginário sem nenhuma diferença relativamente àquilo que se consideram memórias realmente experimentadas: Vergílio Ferreira escolhendo livros na estante, David Mourão-Ferreira parando para respirar, entre livros, o sossego que não lhe dariam as suas muitas pretendentes, os recados que se deixavam, a minha tia trabalhando durante um tempo no andar de cima, aquele que tem as janelas para a rua, os livros que pediam à minha avó para esconder debaixo do balcão, não fosse a PIDE aparecer para os apreender, e que mais tarde eram passados a outra pessoa, a minha mãe, miúda, a espreitar as novidades, abrindo os livros com todo o cuidado e lendo de uma ponta à outra os volumes que não podia comprar, as discussões que por vezes estalavam entre gente das letras, umas vezes motivadas por barricadas estético-literárias, outras por histórias de cama mal contadas. Quando eu comecei a ir à Livraria Portugal já nada disto era assim, claro. A minha avó estava reformada, a minha tia trabalhava noutro sítio e a minha mãe já podia comprar alguns livros; Natália Correia aparecia na televisão, num programa chamado Mátria, David Mourão-Ferreira aparecia com o seu cachimbo na mercearia de uma aldeia onde eu também crescia, e a PIDE, felizmente, já tinha acabado há muito, entre tanques cobertos de gente e cravos que também hão-de ter passado pela Rua do Carmo. Agora, setenta anos depois de abrir as portas, a Livraria Portugal vai ter de fechá-las. A notícia vem em vários jornais, nomeadamente no i, onde António Machado, funcionário da livraria há 40 anos, explica que a situação é “insustentável com as grandes alterações no mercado livreiro, a quebra das vendas e a insuficiência de meios para pagar as despesas”. E diz mais: “Os livros vendem-se hoje em todo o lado: nas grandes superfícies, na internet, nos correios, a preços e com condições que não podemos acompanhar“. Suponho que isto seja o progresso, o mundo a funcionar, o inevitável e blá, blá, blá. Pela minha parte, estou muito triste.
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