É um bolo estranho, essa bola de Berlim. O açúcar a cobrir o castanho da massa exterior; o creme a fugir do interior; o nome, evocando a cidade continental, centro de antigas e modernas europas.
A criança diz “bola de Berlim”. Na palavra vem o gosto, a gulodice, as tardes de esplanada, o fumo que sai do forno. Os berlindes de Verão.
Nas pastelarias desenha-se uma teoria literária – o cromado, os vidros, o cobre, as toalhas, brancas, a conversa entre chá e croissant, o piscar de olho de velha, uma conversa de namorados.
Pelas bolas de Berlim passam conspirações, caixas com fotografias já amarelecidas, antigos recortes, cartas vindas do Oriente. Procuro descobrir o símbolo, abrir na memória um espaço para a razão de ser desta lembrança de doces, na infância da arte.
Dizem-me que a procura é menor, que os bolos enganam os tolos, que é um tema banal, sem qualquer futuro. Eu insisto em meter-me no recheio, no creme, no granulado do açúcar. Sei bem as razões que me assistem.
“Mas sabes mesmo?” pergunta a criança, ansiosa por comer o bolo, por deixar de se ficar apenas de nariz encostado à montra da pastelaria. Procuro explicar-lhe que tudo isto não passa de literatura, de crónica, de jornal, de exercício teórico, transposto para a prática do dia-a-dia. Daí o discurso sair quase incoerente, as imagens repetidas, a vulgaridade assumida.
“Bola de Berlim”, quase em cantiga. Afina, repara, acabo sempre por falar de ti.
Eduardo Guerra Carneiro no Portugal Hoje, 18 de Janeiro de 1980.
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