segunda-feira, 20 de outubro de 2025

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

 

Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

 

E eu sigo, como as linhas de uma pauta

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

As notas pastoris de uma longínqua flauta.

 

Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!

 

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,

Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,

Numas habitações translúcidas e frágeis.

 

Ah! Como a raça ruiva do porvir,

E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,

Nós vamos explorar todos os continentes

E pelas vastidões aquáticas seguir!

 

Mas se vivemos, os emparedados,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas

E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

 

E nestes nebulosos corredores

Nauseiam-me, surgindo os ventres das tabernas;

Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,

Cantam de braço dado, uns tristes bebedores.

 

Eu não receio, todavia, os roubos;

Afastam-se, à distância, os dúbios caminhantes;

E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,

Amarelamente, os cães parecem lobos.

 

E os guardas , que revistam as escadas,

Caminham de lanterna e servem de chaveiros;

Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,

Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.

 

E, enorme. Nesta massa irregular

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

A Dor humana busca os amplos horizontes,

E tem marés de fel, como um sinistro mar!

 

Cesário Verde em O Livro de Cesário Verde

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