sexta-feira, 2 de março de 2018

PEQUENO DESVIO IDEOLÓGICO


Naquela mesa ao fundo do bar, na faculdade
de letras, no tempo em que nada acontecia, fugindo
ao olhar atento dos contínuos, falávamos mais
de política do que de amor, a não ser quando
tu passavas pelas mesas para ir buscar o café e os teus
cabelos lembravam as deusas da antiguidade, com os
ombros nus e o olhar perdido nalgum futuro que
só tu previas. Às vezes, o fumo do tabaco envolvia-te
em uma névoa que lembrava os campos de batalha,
e era como se pedisses que nos fôssemos alistar
nos teus sonhos, mas nó queríamos a realidade
das tuas mãos, e não o ideal de que a tua presença
nos afastava, calando as conversas à tua volta e
obrigando os que estudavam a fechar os livros. E
eras tu, nesse tempo em que nada acontecia, que
fazias acontecer o que não se podia confessar:
o desejo que deixavas, à tua passagem, e que
tínhamos de guardar connosco para que, à
nossa volta, ninguém nos acusasse de fugir
à revolução de que os teus cabelos nos distraíam.

Nuno Júdice


Nota do editor: poema colocado por Nicolau Santos na página de Economia do Expresso, 1 de Dezembro de 2017.

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