sexta-feira, 31 de outubro de 2025

POSTAIS SEM SELO

Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.

Margarida Ferra em Curso Intenso de Jardinagem

Legenda: fotografia de Luís Eme

OLHAR AS CAPAS

Tereza Batista Cansada de Guerra

Jorge Amado

Capa: Manuel Dias

Círculo de Leitores, Lisboa, Maio de 1983

O mar se abriu e se fechou. Tereza suspira aliviada. Gereba pergunta’

- Tem mais algum? Se tem, a gente aproveita e joga no mar. por aqui perto descarreguei a minha falecida.

Tereza lembrou-se daquele que não chegara a ser, arrancado do seu ventre antes da hora do nascimento. Pôs a mão sobre a de mestre Januário Gereba, Janu do bem-querer, fazendo-o mover o leme, mudar o rumo da saveiro, dirigindo-o para pequena enseada entre bambus na margem do golfo, escondido remanso. Estende-se Tereza na popa do saveiro:

- Venha e me faça um filho, Janu.

- Sou bom nisso como quê.

Ali, na barra da manhã, rio e mar.

OS ITINERÁRIOS DO EDUARDO


Rua Azedo Gneco em 1949.

Onde?

Será Chaves? Será Vila Real? Será Porto? Será Lisboa?

Por vezes, o Eduardo, quando fala de ruas, nem sempre  indica a cidade.

Importa saber?

Rua Azedo Gneco em 1949.

O Eduardo fala de escadas de serviço, junto-lhe traseiras de casas, de que tanto gosto. Vão desaparecendo na voragem dos prédios demolidos para abrir construções novas.

«Rua Azedo em 1949. Nas escadas de serviço: corridas, perseguições, casas abandonadas, outras escadas de serviço. O terrível pormenor de uma tesoura aberta, a discussão, o pontapé a atingir-lhe o sexo que logo ali sangrou. Daí. A clínica, raios ultra-violetas, vergonha, e um sinal agora nítido na erecção que talvez excite e interesse e que lhe faz recordar uns clandestinos pães com marmelada ou os livros Zé Fagulha comprados em Natal precário de que mais tarde se fala nas obras completas ao referir a destruição de qualquer coisa a exigir muitas mais páginas.»

Eduardo Guerra Carneiro em É Assim que se Faz a História

Legenda: fotografia Shorpy

AGRÁRIO E AGRESTE

                                        Ao António Rego Chaves

Sobre as árvores encolhidas que gastavam

a ternura de tudo; severo,

o céu desajeitado avolumou-se.

Na testa do silêncio ao pé dos montes

as pedras adoecem entre o sangue

derrota que se imprime por palavras

se imite diminuta nos alqueives.

Sob a capa da terra e no alcance

dos dedos de fora inesperados

a rotura simples dum soluço

ferindo o estrume em breves plantas novas.

Ao longe o grito do abraço em pé

com as vergonhas cobertas de papel

os prumos os cabos o pão um ovo

o vinho deitado, aqui ao pé do choro. 


Armando Silva Carvalho em Lírica Consumível

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

POSTAIS SEM SELO


De tão pequenas coisas depende como se sabe, a felicidade.

José Saramago em Levantado Chão

NOTÍCIAS DO CIRCO

A bem de tudo, e mais alguma coisa, Aquela Coisa nunca deveria ter sido aceite pelo Tribunal Constitucional.

O advogado António Garcia Pereira quer que o Ministério Público accione os mecanismos legais que levem à extinção daquela coisa.

Nada a fazer.

Acordamos sempre tarde!

OLHAR AS CAPAS


Os Problemas da Filosofia

Bertrand Russell

Tradução e Prefácio de António Sérgio

Colecção Stvdivm nº 16

Arménio Amado, Editor, Coimbra 1959

Existe, acaso, qualquer conhecimento tão certo, que nenhum homem razoável possa dele duvidar?

EM CIMA DE MEUS DIAS

 Muita gente me tem falado a meu respeito

como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?
 
Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr-do-sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece
 
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar
 
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
 
É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito

Ruy Belo em Todos osPoemas

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

OLHAR AS CAPAS


 

Uma Campanha Alegre

De «As Farpas»

1º volume

Eça de Queiroz

Lello & Irmão Editores Porto s/d

                                                                            Junho de 1871

 Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito — se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós, e vê.

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniênci a. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.

Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.

À LUPA

Num dos seus primeiros poemas, disse Sophia:

Tudo me é uma dança em que procuro

A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.

À minha volta sinto naufragar
Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar…

Contam os filhos, que Sophia gostava de dançar, e dançava em casa, nas pedras dos passeios, ao mesmo tempo que recitava poemas em voz alta.

OLHAR FRIGIDEIRAS, TACHOS, PANELAS


O livro é de Aníbal Falcato Alves.

Num convívio, em Abril de 1995, de vinhos e petiscos alguém disse que era giro fazer uma casa de petiscos para a feira de Maio em Estremoz.

Assim foi e chamaram-lhe Cozinha dos Ganhões.

Ganhão, dicionariza o livro é «o que trabalha com as juntas de bois,. Aquele que executa qualquer trabalho.»

«Cada tasca, cada restaurante, cada cozinheiro, em dias diferentes, apresentaram as suas especialidades.»

Em Maio de 1994 publicou-se o livro com o mesmo nome, Apresentação gráfica de Armando Alves, prefácios de Borges Coelho e Helder Pacheco, receitas alentejanas, um série de depoimentos com gentes alentejanas a contarem o que foram as suas fomes, as suas vidas em tempos de ditadura.

Este é o prefácio de António Borges Coelho:


Legenda: pormenor de uma pintura de Armando Alves que faz parte de  Os Comeres dos Ganhões.

NESTE DIA


Havia uma exposição de Pedro Calapez para montar na Gulbenkian. 

João Miguel Fernandes Jorge iniciou um Diário, no primeiro dia em que, juntamente com Maria Helena Freitas, se iniciaram os trabalhos de montagem,

O livro é muito interessante. Volta e meia pego-lhe.

Neste Dia, estamos em 8 de Agosto de 2003, um domingo, Amsterdão: flores, pinturas.

Legenda: Interior em Arcachon de Manet.

EM BUSCA DE FLORES NO DESERTO


 A pergunta é feita hoje por Amílcar Coreia no Público:

 «Porque está Trump tão empenhado no cessar-fogo em Gaza?»

Benjamim Netanyahu não está interessado na paz.

A Donald Trump uma  só coisa importa: negócios e agarrado a isso, money, money, money:


«Netanyahu troçou de Biden, e nunca se deu na perfeição com os democratas, mas acabou nas mãos de um republicano que tem os seus próprios projectos económicos para a Riviera e sócios árabes para o concretizarem.»

GERAÇÃO, GERAÇÕES

Extinguem-se as vozes que acompanharam a nossa juventude:

nem um murmúrio, nem um fio de água permanecerá

de tudo qunto fomos; e agora, vêm as hienas do passado

arreganhar os dentes contra o que ousámos transformar!

 

Também morrerão as hienas. Grandes monumentos de pedra,

de que não conheceremos mais o sentido

permanecerão solenes, inertes, no meio do trânsito das cidades;

 

tal a leitura que os vindouros irão fazer

das nossas vidas.

 

Luís Filipe Castro Mendes em Poemas Reunidos

terça-feira, 28 de outubro de 2025

NOTÍCIAS DO CIRCO

Sim, há a frase atribuída a Voltaire: «Não concordo com o que dizes, mas defendo até à morte o direito de o dizeres.», mas o Tribunal Constitucional nunca deveria ter aprovado a criação de Aquela Coisa. Tudo aquilo é gente indigente, desclassificada. Os cartazes colocados, agora, em diversas localidades, não têm nada a ver com propaganda eleitoral para as presidenciais, incluem frases como "Isto não é o Bangladesh" e "Os ciganos têm de cumprir a lei", estão a desencadear diversas queixas por discriminação.

Farid Ahmed Patwary, um dos representantes da comunidade do Bangladesh em Portugal, questiona: «Como pode um candidato à Presidência da república espalhar ódio por outro país?

O presidente de aquela coisa recebe das televisões - e não só! - , por motivos pouco claros, obscenos direi, uma atenção mais que vergonhosa.  Não há mais ninguém que tenha essa visibilidade. Não há peido que dê, que não estejam presentes as câmaras de televisão para o registar. Foi esta a criatura que as televisões – e não só! - criaram, e não se poderá  esquecer que foi uma televisão de sargeta que lhe proporcionou, como comentador de futebol, o estágio para chegar onde chegou, ao ponto de, ontem ter gritado na Assembleia da República, que são precisos 3 salazares para endireitar o país, que ele chama de «bandalheira»

Legenda: imagens da Sic Notícias e da Rádio Renascença.  

DIZEM ALGUNS DIRECTORES LITERÁRIOS

Dizem alguns directores literários
(e accionistas da própria propaganda)
que «o Sena não se vende». E é verdade:
Não vende. Só as putas se vendem.
E em Portugal são tantas que não há
bolsas bastantes para comprá-las,
nem caralhos bastantes
para fodê-las como mereciam.

Jorge de Sena

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

POSTAIS SEM SELO


 O mal de quem apaga as estrelas é não se lembrar de que não é com candeias que se ilumina a vida.

Miguel Torga citado por Miguel Carvalho em Álvaro Cunhal: Íntimo e Pessoal

NOTÍCIAS DO CIRCO


Eleições no Sport Lisboa e Benfica.

Um sábado chuvoso e 86.297 exerceram o seu voto, aqui e além fronteiras.

Um record de votantes a nível mundial em clubes desportivos. O anterior pertencia, desde 2010, ao Barcelona com 57.098 votantes.

19 de Abril de 1972

2º mão das meias finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus

Em Amsterdão o Benfica perdera por 1 a 0.

Em Lisboa não passaram de um empate a zero.

Artur Portela Filho no República:

«A estes ninguém os meteu em autocarros.

São oitenta mil e foram eles que escreveram os cartazes.»

Provam que a multidão pode ser um acto voluntário.

Provam que o entusiasmo pode ser um acto espontâneo.

A diferença entre a política e a sociologia chama-se Benfica. Um Benfica é o que é – indústria do músculo. Fábrica de chutos, catedral de taças – e mais aquilo que nada mais consegue unir.

O Benfica foi inventado para substituir a Política.

Agora, que a Política quer regressar, encontra o lugar tomado. 80.000 lugares tomados.»

VIESTE COMO UM BARCO CARREGADO DE VENTO

Vieste como um barco carregado de vento, abrindo

feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa

que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste

o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

 

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,

se partiste,

que dentro de mim se acanham as certezas e

tu vais sempre ardendo, embora como um lume

de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

 

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar

o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;

e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:

o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,

exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam

no cais como se transportassem no corpo o vaivém

dos barcos. Dizem-me os seus passos

 

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam

sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei

que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde

para quase tudo. Por isso, vou para casa

 

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

 

Maria do Rosário Pedreira em O Canto do Vento nos Ciprestes

domingo, 26 de outubro de 2025

À LUPA

Mariana Mortágua, deputada única do Bloco de Esquerda, anunciou que não se recanditará à liderança do partido.

Do editorial de hoje do Público:

«Como escreveu Daniel Oliveira, um dos fundadores do BE, no Expresso há dias, Mortágua “tem o rosto da derrota” e, por isso, a sua saída é a única decisão ajuizada, a bem da continuidade do Bloco de Esquerda.»

MÚSICA PELA MANHÃ


Por vezes, tantas vezes, são fortemente animadas as discussões na esplanada do Café do Bairro.

Discussões sobre tudo e mais alguma coisa, mexericos, má-língua. No preciso momento há quem fique amuado, mas ao outro dia tudo passou.

Quando as coisas aquecem há sempre o Dudu que lança o seu grito de calmaria:

- Eh pá! Mas vocês pensam que isto é a casa da Irene?

 A Casa da Irene é uma velha canção italiana, 1964, divulgada e consagrada a conhecer pelo Nico Fidenco. A Casa da Irene atira para um lugar de refúgio, qual albergue espanhol, de alegria e comunidade onde tudo, mas mesmo tudo, pode acontecer para atenuar os dias cinzentos, opressivos, feitos de pedra, as ruas vazias, sem céu, que então se vivia, tanto em Itália, como por aqui.

Na casa da Irene pode cantar-se, pode rir-se, pode dizer-se em voz alta, um poema de Manuel Bandeira.

Porque não!?


Irene no Céu

 

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

sábado, 25 de outubro de 2025

CONVERSANDO

Seguem-se palavras  que António Borges Coelho colocou como Nota de Abertura em Crónicas e Discursos.

No topo deste Conversando está a reprodução dos títulos da Bibliografia de Borges Coelho que se pode ler numa das badanas do livro.

Impressionante, simplesmente.

António Borges Coelho deixou-nos há uma semana. Já o disse, nunca troquei uma palavra com ele.

Foi preso pela PIDE em 1956, quando era funcionário do Partido Comunista. Depois de sair da cadeia, seis anos e meio depois, foi proibido de lecionar até ao 25 de Abril. Após o 25 de Abril, escreveu Pedro Tadeu, «dedicou-se a construir uma narrativa plural e crítica, dando voz aos esquecidos da história oficial – mouros, judeus, camponeses, operários. Foi um dos primeiros professores a estabelecer práticas democráticas nas aulas e na governação académica universitária».

Borges Coelho era um transmontano de Murça. Olham-se as suas diversas fotografias e esse mundo mostra uma serenidade, um gosto de viver, uma simplicidade quase única, um saber para além da normalidade do saber.

Atempadamente a Universidade Portuguesa fez a justiça às suas qualidades de pedagogo, que a universidade da ditadura não só ignorou como perseguiu. Permitiu-lhe que passasse a fazer o que sempre gostou: estudar, ensinar.

António Borges Coelho, enquanto preso político no Forte de Peniche, conheceu bem o som do mar, viveu na Parede, quase junto a um rio que é um mar.

De novo o som o ressoar o mar

De novo o embalo do tumulto mais antigo

E a inteireza de instante primitivo

 

De novo o canto o murmurar o mar

Que se repete intacto e sacral

De novo o limpo e nu clamor primordial

Não consegui saber quais os trechos musicais que Borges Coelho gostava de ouvir. Sei que foi profundo admirador de Fernando Lopes Graça, seu camarada e vizinho de rua na Parede. Mas deixei em Música pela Manhã, a canção matinal que Edward Grieg compôs para a peça de Henrik Ibsen Peer Gynt.

MÚSICA PELA MANHÃ

A manhã, em Lisboa, acordou, por enquanto, cinzenta. Pode ser que o Sol consiga romper as nuvens.

Or aqui , falarei que o historiador e poeta António Borges Coelho, nos deixou há uma semana.

De que músicas gostava Borges Coelho

Admirava a música de Fernando Lopes Graça.

Contudo, sei lá bem porquê lembrei-me de Edward Grieg, da canção matinal que compôs para a peça de Henrik Ibsen Peer Gynt.

Gostará, certamente.

À LUPA


O artigo é de Ana Margarida Alves no Público e aborda a falta de efectivos nas forças de segurança.

«Se na PSP e na GNR faltam profissionais, na PJ o problema assenta na falta de experiência e especialização. O que esperar da polícia quando ser polícia interessa a cada vez menos pessoas?»

A Lupa, passando os olhos pelo artigo, reteve a frase:

«Os jovens preferem ir para uma caixa de supermercado».

Tão dramática, como triste, a conclusão a que se chega.

E ainda o trabalhador Luís, mais a sua troupe de artistas, diz que o governo apenas pensa no bem-estar dos portugueses…

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

NOTÍCIAS DO CIRCO


 Ao longo dos anos, temos vindo a assistir a este filme: salas de cinema que vão fechando, salas que continuarão a fechar. É o que se lê, hoje, no Público, num artigo assinado por Joana Amaral Cardoso:

«Neste ano fecharam 37 salas de cinema em multiplex e mais nove estarão em vias de se apagar
Desde o início do ano, Portugal perdeu 37 ecrãs de cinema e está em vias de ver extinguirem-se mais nove, num total de 46, fruto do encerramento dos multiplexes, ou conjuntos de multissalas, da Nos, Cineplace e UCI nas localidades da Maia, Vila Nova de Gaia, Viseu, Tavira, Guia, Seixal e Funchal. Num momento em que a exibição cinematográfica em sala tenta acompanhar os níveis de receitas e afluência de 2024 — tendo perdido, até ao final de Setembro, 4,3% dos espectadores face ao mesmo período do ano anterior —, estes encerramentos resultam tanto de decisões dos exibidores como dos promotores dos espaços, os proprietários dos centros comerciais. Os multiplexes estarão a perder rentabilidade numa crise mais ou menos silenciosa da exibição?
No último mês foi noticiado pela agência Lusa o fecho dos cinemas do Maia Shopping e do Tavira Grand Plaza, ambos da Nos Cinemas. Entretanto fecharam as seis salas do Fórum Viseu, também da Nos Cinemas. E, como noticiou a Lusa há um mês, também o Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia, pode perder nove dos seus 20 ecrãs, explorados pela UCI Cinemas (a terceira maior exibidora do país). A desafectação do espaço correspondente às nove salas da actividade cinematográfica, que por lei tem de ser feita por pedido à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), já foi autorizada. O centro comercial pertence à Sonae Sierra. A maioria destas 20 salas continua em funcionamento à data de publicação desta notícia.»

POESIA E PROPAGANDA

Hei-de mandar arrastar com muito orgulho,
Pelo pequeno avião da propaganda
E no céu inocente de Lisboa,
Um dos meus versos, um dos meus
Mais sonoros e compridos versos:

E será um verso de amor...

Alexandre O’ Neill de Tempo de Fantasmas em No Reino da Dinamarca


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

OLHAR AS CAPAS


O Mito de Don Juan e o Donjuanismo em Portugal

Urbano Tavares Rodrigues

Colecção Ensaio

Edições Ática, Lisboa, Janeiro de 1960

Escrever, com desejo de seriedade, sobre «Donjuanismo» é, de certo modo, ingrato e de uma pesada responsabilidade, ainda que fascinante, dada a latitude que o tema, riquíssimo nos seus múltiplos desdobramentos e implicações, em quatro séculos e meio foi ganhando, a ponto de resumir hoje, aos olhos de não poucos ensaístas, algumas das qualidade maiúsculas do homem, investidas no «pecado» ou no crime, e de consentir os ângulos de visão mais paradoxais e artificiosos funambulismos da inteligência. 

NA TRANSPARÊNCIA DE UM OUTONO

Que na transparência de um outono
o vento avive
a voz que na sombra aceita o fogo
e ressoe na claridade das árvores e dos muros
como uma música que dilacera e que consola
a funda ferida que só ela abre e estende até à luz.
Com as veias, com os lábios, com os pulsos brancos
o corpo há-de tecer o contorno do vento
quando os vestígios das folhas vão libertando o sangue
e protegem as espáduas como num repouso vibrante.
Alguém dirá a esperança, os gomos transparentes
da vida voltada para a vida, a presença incandescente
em cada arbusto, a harmonia que reina um instante
nos seus élitros brancos, num fulgor absoluto.

António Ramos Rosa de O Calcanhar do Vento em

Obra Poética Vol. 1

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

À LUPA

São úteis, alguns comentários que os leitores fazem nas páginas dos jornais, às notícias, aos artigos de opinião que por lá se publicam.

Outros são penosos, a esmagadora maioria, verdadeiramente inqualificáveis, que nos colocam no limiar do vómito.

Deveriam ser proibidos?

Deveriam ser retirados esses penosos comentários?

Teremos sempre de lembrar a frase atribuída a Voltaire:

«Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizer.»

O leitor António Cunha, num artigo, no Público, sobre «aquela coisa», deixou este útil comentário:

«Portanto, a direita que vai a Fátima e à missa ao domingo não faz uso do que aprende nas congregações que frequentam!»

FEVEREIRO DE 2014: A GUERRA É A GUERRA


 Como fazer para parar a Guerra da Ucrânia?

Aparentemente, não há um fim à vista.

A entrada em cena de Donald Trump veio prejudicar, ainda mais, o que parece vir a acontecer: uma guerra interminável.

Teresa de Sousa, no Público de 19 de Setembro, coloca em título uma frase esmagadora:

«Trump dá (mais) duas semanas a Putin para destruir a Ucrânia»

E acrescenta:

«Toda a gente sabe que o Presidente russo não aceita nada menos do que a capitulação de Kiev. A sua estratégia imperial não é compatível com qualquer solução que não seja uma vitória.

Quantas vezes já vimos esta cena? Quando tudo levava a crer que Donald Trump, frustrado com os resultados da cimeira do Alasca, impressionado com a capacidade de resistência dos ucranianos, desejoso de somar o “nono” sucesso na resolução de conflitos que duravam “há 3 mil anos”, parecia disponível para fazer a balança cair para o lado a Ucrânia, tivemos na sexta-feira, directamente da Casa Branca, um espectáculo que nos diz o contrário.

A frase mais repetida pelo Presidente americano foi a seguinte: “Putin quer a paz.” Falou com ele ao telefone, na quinta-feira, durante duas horas e meia. “Foi uma conversa muito boa.” Da qual o único resultado do qual temos a certeza foi que Vladimir Putin conseguiu mais duas semanas – são quase sempre duas semanas – para continuar a bombardear a Ucrânia, destruindo cidades, matando civis, garantindo que os ucranianos vão enfrentar mais um Inverno com as suas centrais térmicas destruídas ou danificadas. Quanto aos célebres mísseis Tomahawk, fica para próximo encontro. Talvez em Budapeste.

FRANCISCO PINTO BALSEMÃO (1937-2025)


Aos 88 anos morreu Francisco Pinto Balsemão.

Acima de tudo um jornalista, o Expresso em tempos de ditadura é uma pedrada no charco.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Carlos Moedas é um político deprimente.

Saber que o teremos a dirigir Lisboa por mais 4 anos, é um enorme pesadelo, um circo de horrores.

 A oposição pede responsabilidades políticas à gestão de Carlos Moedas na câmara de Lisboa, depois de o relatório preliminar sobre o acidente com o elevador da Glória, ter concluído que o cabo não estava certificado para transporte de passageiros, e ter arrasado a manutenção por uma empresa externa.

«A gravidade da situação não pode merecer, da parte do presidente da câmara, apenas a referência de que isto não é um problema político, mas sim um problema técnico».

Valentina Marcelina, editorial do Diário de Notícias:

«É uma recomendação óbvia e tardia. Este relatório preliminar não fixa culpas penais. Essa é tarefa do Ministério Público, que aguardaremos e não esqueceremos - foram 15 vidas o resultado desta cadeia de irresponsabilidades.

Ao apontar para responsabilidades institucionais, o GPIAAF evidencia o retrato de uma falência de sistema. Uma empresa pública que não controla o que compra, um Estado que não supervisiona o que transporta e uma cidade que confiou num símbolo sem garantir a sua segurança. A tragédia não foi inevitável. Estavam lá os sinais. Foi anunciada.»

COMO SERÁ ESTAR CONTENTE?

Como será estar contente?

Lançar os olhos em volta,

moderado e complacente,

e tratar toda a gente

sem tristeza nem revolta?

Sentir-se um homem feliz,

satisfeito com o que sente,

com o que pensa e com o que diz?

Como será estar contente?

 

Deve haver alguma mecânica,

qualquer retesada mola

que se solta e desenrola

no próprio instante preciso,

para que um homem de carne,

de olhos pregados no rosto,

possa olhar e rir com gosto

sem estranhar o som do riso.

 

Na minha tosca engrenagem,

de ferrugenta sucata,

há qualquer mola de lata

que não se distende bem,

qualquer dessorada glândula

ou nervo que não se enfeixa,

qualquer coisa que não deixa

deflagrar essa girândola

de timbres que o riso tem.

 

Não ter riso e não ter casa,

nem dinheiro nem saúde,

não se conta por virtude

que a miséria é ferro em brasa.

Mas ter casa, ter dinheiro,

ter saúde e não ter riso,

flagelar-se o dia inteiro

como se o sangrar primeiro

fosse um tormento preciso,

tê-lo sempre forte e vivo,

espantado a todo o momento,

isso sim, será motivo

de grande contentamento.

 

António Gedeão em Poesias Completas

terça-feira, 21 de outubro de 2025

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO

Perante o relatório preliminar sobre o trágico acidente do elevador da Glória, o presidente da Câmara de Lisboa entendeu realçar: «a infeliz tragédia do elevador da Glória foi derivada de causas técnicas e não políticas».

Na noite em que em que obteve novo mandato para a presidência da Câmara, Moedas confidenciou que sempre confiara na lucidez dos lisboetas e verificou que isso aconteceu e mais uma vez acreditaram em nós e agora sim, há condições para fazer mais na cidade de Lisboa.

Carlos Moedas é um político medíocre,medroso,incompetente.

Em quatro anos, tirando as cenas circenses que compõe e inventa, não se preocupou, minimamente  com o gravíssimo problema da habitação, o caos da mobilidade, a degradação e o desleixo de vários espaços comuns de lazer, à sujidade de passeios e ruas, a limpeza urbana, além da falta de iluminação.

Que face a este descalabro citadino, alguns lisboetas ainda lhe tenham dado novo mandato, é necessariamente um caso de estudo.

1.

Isabel tem salário de 900 euros e renda de 750: “Vejo-me neste papel de ser pobre”

Mãe e filha estão em risco de pobreza, com um rendimento inferior a 632 euros per capita (por adulto, no caso). Fintam a fome graças à ajuda de uma associação. Uma história entre 1,8 milhões.

- lido no Público.

2.

O risco de pobreza das mulheres continua  a aumentar face ao homens. São 17,6% contra 15,4%, o que se explica pelo facto de os seus salários serem em geral muito baixos, assim como todas as prestações que deles dependem. «A relação entre mulheres e pobreza assenta nos baixos salários e pensões, na desigualdade remuneratória, na discriminação, na precariedade laboral, na desvalorização do trabalho doméstico e de cuidados não remunerados e no maior desemprego das mulheres».

3.

Uma das maiores empresas mundiais, a Nestlé, anunciou o despedimento de 16 mil trabalhadores ao longo dos próximos dois anos.

4.

Um comboio Intercidades da CP que ligava Lisboa a Faro perdeu uma carruagem a meio da viagem, quando o engate que ligava duas carruagens se partiu, aparentemente por deficiente manutenção do equipamento. 

5.

Mais de 15% dos portugueses não conseguem aceder a cuidados dentários por razões financeiras. Se as contas forem feitas apenas para a população em risco de pobreza, a proporção dispara para os 32,5%.

6.

Só os loucos cantam na rua. Faz falta gritar. Grito.

António Borges Coelho em Crónicas e Discursos

O OUTRO LADO DAS CAPAS


A Cidade e as Serras

Será com certeza o livro mais conhecido, mais lido de Eça de Queiroz.

Grande parte das edições dos livros de Eça que fazem parte da Biblioteca da Casa, são os que a Lello & Irmão editaram.

Foi num desses livros que li pelos meus 13 anos, A Cidade e as Serras. 

Acontece – e aconteceu algumas vezes – que o livro desapareceu. 

Num escritório de import-export, meu primeiro emprego, os processos, volta e meia, não apareciam. O patrão alemão clamava «onde está o processo da Miele?». Silêncio gritado na pequena sala. 

Voltava o alemão,  sr. Heick de seu nome: « foi para a praia?»

Por onde anda o livro do Eça editado pela Lello & Irmão, tantas vezes lido, tantas vezes manuseado?

O exemplar que agora existe, comprei-o num alfarrabista. A edição do Círculo informa que o livro tinha uma sobrecapa de Antunes. Mas o alfarrabista garantia que o livro já o comprara sem a sobrecapa.

Razão da deselegância desta capa do livro que se publica.

Mas não sairei sem voltar a ler o pedacinho em que Eça fala do arroz de favas e dos peitos trementes da «formidável moça, de enorme peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado»

Que maravilhosos Eça de Queiroz!

«… Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram procura os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!

E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…

- deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!»

OLHAR AS CAPAS

A Cidade e as Serras

Eça de Queiroz

Círculo de Leitores, Lisboa, Setembro de 1984

Sacudi violentamente Jacinto:

- Acorda, homem, que estás na tua terra!

Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.

 - Então é Portugal, hem? Cheira bem!

-Está claro que cheira bem, animal!

A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslizou, com descanso, como se passeasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando e gozando a beleza da terra e do céu.

O meu Príncipe alargava os braços, desolado:

- E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colónia!... Entro em Portugal, imundo!

NOTÍCIAS DO CIRCO

António Costa, na sua vida dourada em Bruxelas, bafejado por toda aquela serenidade monetária, tem que se entreter com algo, e escreveu que os Presidentes reeleitos não têm ajudado à “estabilidade”.

Marcelo não se revê na opinião.

A jornalista Liliana Borges, no Público aborda os factos: 

«Num regime parlamentar como o português, o Presidente da República deve ser árbitro, não jogador. O recado é de António Costa que, no prefácio do livro Que Presidente da República para Portugal? – Contra a Tentação Presidencialista, do constitucionalista Vital Moreira, vinca que quem se senta em Belém deve ter uma função “essencialmente moderadora” e ser o “garante do regular funcionamento das instituições” — o que não tem acontecido, conclui. Marcelo Rebelo de Sousa anotou os recados, mas não se reviu nas críticas, e defendeu que a estabilidade “funcionou em momentos críticos”, insistindo que houve “sintonia” entre Belém e São Bento durante “oito anos e meio”.»

Leitura de um artigo de Liliana Borges no Público


ELOGIO DA DIALÉTICA

A injustiça avança hoje a passo firme;
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo.

Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.

Bertold Brecht

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

CONVERSANDO


Agosto de 1965.

O meu pai chega a casa revelando que o Carvalho da Clássica Editora, antes da chegada da PIDE para proibir o livro, conseguiu esconder alguns.

O livro era A Revolução de 1383 de António Borges Coelho. Em 1964 já tinha colocado «Fora do Mercado», também da autoria de António Borges Coelho um livro editado pela Prelo: Raízes da Expansão Portuguesa.

Lê e depois conversamos, disse-me.

Antóbio Borges Coelho abre o livro com uma citação tirada do Emílio de Jean Jacques Rousseau, seguindo-se uma homenagem a Fernão Lopes:

«Os sublevados de 1383 ganharam a sua causa. Se a tivessem perdido, talvez conhecêssemos tão só as maldições do poder.

Assim todo o 1º e boa parte do 2º volumes da Crónica de D. João I são dedicados à narrativa e exaltação da gesta revolucionária.»

Tenho que ir muito longe nas leituras para balizar a primeira vez que vi uma referência a Rio de Onor. Foi em A Revolução de 1383 de António Borges Coelho. 

E hoje não consigo de adiantar os porquês do fascínio.

É na Viagem a Portugal de José Saramago que volto a encontrar Rio Onor. Pelo meio há um poema do Ruy Belo, mas só o li depois da Viagem de Saramago, pertence ao livro A Nau dos Corvos e está na página 326 de Todos os Poemas de Ruy Belo:


O GIRASSOL DE RIO DE ONOR


«Existe juro um girassol em rio de onor

mais importante por exemplo para mim que seja lá quem for

Eu vi hoje na andaluzia o girassol de rio de onor

à beira de uma estrada pouco antes de chegar a fernan nuñez

(Amigos que passais em direcção a córdova ou aos cobres de lucena

dai-me notícias desse girassol menos brilhante sol

mas bem mais acessível pelo menos para nós que não temos raízes

mas pomos o que temos sobre a terra)

Reconheci-o logo embora há muitos anos o não visse

além de o conhecer sabia ser ele natural de rio de onor

e lá habitualmente residente

É ele raios o partam disse idênticas as pétalas igual a cor

é ele ó céus é ele sem tirar nem pôr

o meu amigo girassol de rio de onor

(é fácil ter na flor um verdadeiro amigo

se o não sabíeis antes desde agora que o sabeis)

Era mesmo era ele sem tirar nem pôr

o girassol de rio de onor há tantos anos visto

Mas nós os que lá fomos e por lá passámos

nós é que já não somos quem lá fomos

e muito menos nós que somos vivos menos os mesmos somos

que tu ó meu amigo com as tuas

duas pernas pendentes lá da ponte sobre o rio

pequena ponte e diminuto rio

a dois passos dos olhos tão redondos que solares

dessas duas ou três quatro no máximo crianças

(meu deus essas crianças onde é hoje o seu país?)

Viajo  pela espanha mas é este julgo juro o girassol

pois embora não esteja em Portugal

não há ainda julgo plantas nacionais

e além disso aquela terra é meio espanhola

Mas nós que assim passamos pelos campos pelos dias

nós que não temos nem nunca tivemos

coisa pequena como uns palmos de país

pomos tudo  o que somos nestes seres que passamos

e nos fixamos só em certas fotografias que tiramos

Era aquele julgo juro o girassol de há anos

mas nós que como sombras por aqui passamos

porventura seremos os que éramos há anos?

Qual é ao certo o nosso verdadeiro país?

Lanço a pergunta aos verdes campo outonais da andaluzia

mas esta paisagem que tanto me diz

quem sou isso é que ela nem ninguém mo diz»


Mas voltemos A José Saramago:

Mas o viajante reconhece que «Não está bem em si: Afinal chegou a Rio de Onor, tanto o quis e agora nem parece contente. Certas coisas que muito se desejam, não é raro que nos deixem perdidos quando as obtemos.»

Também se encontra confuso. De Rio de Onor, para além do livro comovedor de que atrás fala, Saramago não indica o nome do autor do livro e apenas guarda a generosidade de Daniel São Romão e sua mulher que lhe deram pão e bagaço.

«Afinal de contas, onde está a fronteira? Como se chama este país, aqui? Ainda é Portugal? Já é Espanha? Ou é só Rio de Onor, e nada mais que isso?»

A Rio de Onor chamaram um dia uma das aldeias Maravilhas de Portugal. Ao lado há uma outra aldeia vizinha com o mesmo nome, mas em terras de Espanha. Contudo uma placa lembra:  "Mentalmente somos um só povo.".

E de novo António Borges Coelho:, pág.36 de A Revolução de 1383: