É Assim Que Se Faz A História
Eduardo Guerra Carneiro
Capa: Dorindo de Carvalho
Colecção Cadernos Peninsulares
Assírio &Alvim, Lisboa, Abril 1963
J.C.M.C.
(Fragmentos comentados de uma
carta. Também: dedicatória)
O princípio de tudo num P.S.: Há tantos silêncios nesta carta. Tantas
coisas que não se podem deixar escritas.
Depois: os segredos compartilhados (Pierrot mon ami, mon semblable, mon frère), o teu regresso. De súbito, a nova explosão, as praias quietas e mornas, um livro (Jules e Jim) ou um filme. Tu dizias que não esperavas a minha carta cheia de som fúria. Falavas de um tempo de escuridão total. Eu diria: as trevas.
Ainda existiam as pradarias da Camarga, as viagens ao Tibete, jovens com casacos arménios, profetas, a maison, antigo bordel durante a ocupação alemã, onde até o Oliveira dormia deitado por terra (sobre as carpetes, enfim...). Quase agarravas as nossas austrálias, e o tempo perdido, quando te juntavas a tipos com free man
escrito nas costas e ouvias o locutor da Europe 1 perguntar: Porque vêm aqui? Respondias com eles: yes! yes! Falavas, claro, de Obaldia, Boris Vian e, sempre, de Godard. Et maintenant le cinéma c'est Jean-Luc Godard, dizia Aragon. Tu
comentavas: foi a coisa mais acertada que disse até hoje. Mas o tempo era a escuridão total: as trevas.
Estávamos em 1966. Em Bruxelas, a insípida, velhos bebiam cerveja e o Brel ardia em flamengo. Ias ouvir Ornette Coleman para a porta do Jazzland e contavas coisas do parque de Montsouris. Tinhas já bilhete para o concerto do Thelonious Monk mas continuavas a falar-me de Anna Karina, de um sol bonito que ia chegar, da
Alsácia, de Mulhouse, dos bons vinhos do Reno e da Suíça, onde chegaste horas depois de Anita Eckberg dirigir a todos os genebrinos a saudação de despedida. O regresso a Paris. O tempo da escuridão total: as trevas.
(Fragmentos comentados de uma
carta. Também: dedicatória)
O princípio de tudo num P.S.: Há tantos silêncios nesta carta. Tantas
coisas que não se podem deixar escritas.
Depois: os segredos compartilhados (Pierrot mon ami, mon semblable, mon frère), o teu regresso. De súbito, a nova explosão, as praias quietas e mornas, um livro (Jules e Jim) ou um filme. Tu dizias que não esperavas a minha carta cheia de som fúria. Falavas de um tempo de escuridão total. Eu diria: as trevas.
Ainda existiam as pradarias da Camarga, as viagens ao Tibete, jovens com casacos arménios, profetas, a maison, antigo bordel durante a ocupação alemã, onde até o Oliveira dormia deitado por terra (sobre as carpetes, enfim...). Quase agarravas as nossas austrálias, e o tempo perdido, quando te juntavas a tipos com free man
escrito nas costas e ouvias o locutor da Europe 1 perguntar: Porque vêm aqui? Respondias com eles: yes! yes! Falavas, claro, de Obaldia, Boris Vian e, sempre, de Godard. Et maintenant le cinéma c'est Jean-Luc Godard, dizia Aragon. Tu
comentavas: foi a coisa mais acertada que disse até hoje. Mas o tempo era a escuridão total: as trevas.
Estávamos em 1966. Em Bruxelas, a insípida, velhos bebiam cerveja e o Brel ardia em flamengo. Ias ouvir Ornette Coleman para a porta do Jazzland e contavas coisas do parque de Montsouris. Tinhas já bilhete para o concerto do Thelonious Monk mas continuavas a falar-me de Anna Karina, de um sol bonito que ia chegar, da
Alsácia, de Mulhouse, dos bons vinhos do Reno e da Suíça, onde chegaste horas depois de Anita Eckberg dirigir a todos os genebrinos a saudação de despedida. O regresso a Paris. O tempo da escuridão total: as trevas.
O princípio de tudo num P.S.: Há tantos silêncios... Depois, agora: os telefones funcionam, as estradas abrem-se com força à nossa frente, as palavras ardem nos lábios, os descamisados percorrem o sul com as costas queimadas pelo sol intenso, Porto Covo abriga ainda uma canção, dois ou três maços de cigarros vazios, um spray para a garganta que lá ficou esquecido, uma aventura dos anos cinquenta que repetimos nos nossos trinta anos. Falavas de um tempo de escuridão total: as trevas. Um P.S.: Tantas coisas que não se podem deixar escritas...
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