“Não é o santo que alguns louvam nem o demónio que outros aborrecem, é, mas não simplesmente, um homem. Chama-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinónimo de uma certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas. As memórias pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a comer os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito. Não leremos as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar. E também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma reflexão sobre a grandeza e a decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las. Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar silêncio sobre os destinos prováveis e possíveis do partido de que foi, por muitos anos, contínua e quase solitária referência. Quer no plano nacional, quer no plano internacional, não duvido de que sejam de amargura as horas que vive o meu camarada Álvaro Cunhal. Não é o único, e ele o sabe. Algumas vezes o militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele foi, e disse-lho. A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultado que se visse, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. Envelhecer é não ser preciso. Ainda precisávamos de Álvaro Cunhal quando ele se retirou. Agora, quando cumpre os seus noventa anos, talvez já não precisemos dele. Mas o que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso.”
Este texto de José Saramago, por ocasião dos 90 anos de Álvaro Cunhal, foi publicado na revista “Pública” do “Público” de 9 de Novembro de 2003
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