Eduarda
Dionísio morreu. No dia a seguir à sua morte (quando este texto foi escrito) a
comunicação social mal deu por isso. Suponho, tenho mesmo a certeza, que o
mesmo não se passa nalguns meios literários e culturais importantes que foram
contemporâneos, cúmplices e testemunhas das actividades e obra de Eduarda
Dionísio. Esses certamente que deram pela perda e se reencontram no luto e na
homenagem. Não é que ela pertença a um tempo do qual não sejamos todos
contemporâneos, mas num mundo onde se sobrepõem planos histórico-cronológicos
tão diferentes – como é o da literatura, da arte, da cultura – a coexistência
não significa obrigatoriamente uma relação de contemporaneidade.
Eduarda Dionísio é uma daquelas figuras que nos obrigam a pensar no significado
e pertinência do conceito de geração, na medida em que se moveu em função de
ideias colectivas e de camaradagens culturais (mencionem-se, como nomes
fundamentais da sua constelação, Luis Miguel Cintra e Jorge Silva Melo) que
nunca se confundiram com os meros gestos gregários plenos de conformismo.
O jornalismo cultural mostra-se tão alheio à morte de Eduarda Dionísio porque
vive num “presentismo” sem memória e num espaço público cujos territórios e
fronteiras estão “globalizados” e têm radares mais atentos ao que de Londres e
Nova Iorque é exportado com o selo da universalidade (veja-se o que é a versão
actual, degradada, de uma “literatura mundial”, tal como Goethe a definiu), sem
recuo em relação ao que há aí de inócuo e provinciano. Daí que o jornalismo
cultural responda com muito maior urgência e solicitude à morte, também
recente, do escritor inglês Martin Amis (como se pode comprovar através de uma
simples pesquisa na Internet) do que ao falecimento de uma escritora portuguesa
que também assentou arraiais no teatro (com ligação, entre outros, ao Teatro da
Cornucópia: de cenógrafa a autora e tradutora de textos, nada do que diz
respeito a esta arte que implica trabalho colectivo lhe foi estranho) e foi
mulher de muitos ofícios culturais e literários.
Desde 2008, estava à frente da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio, que ela
fundou com um conjunto de amigos e transformou em centro cultural, situado no
coração de Lisboa, na Mouraria, com um programa de actividades que sempre
estiveram muito, mesmo muito, para além da evocação e tratamento do espólio
literário do seu pai. A última manifestação editorial, e também festiva, da
Casa da Achada foi o lançamento, no dia 25 de Abril, do quarto volume de
Passageiro Clandestino, o diário de Mário Dionísio, acompanhado por dois
volumes de notas de Eduarda Dionísio.
Nas exíguas reacções dos media, ocorreu a expressão “activista cultural”. A
essa categoria podemos dizer que pertenceu de facto Eduarda Dionísio, na
condição de darmos a essa palavra, “activista”, um sentido que não coincide
exactamente com o que a palavra hoje evoca. A cultura foi de facto o seu campo
de acção (e também de estudo e investigação, que deu origem a um livro chamado
Títulos, Acções, Obrigações, com um subtítulo descritivo: Sobre a Cultura em
Portugal – 1974-1994), sempre vinculado à acção política. Mas a ideia – e a
prática – de divulgação cultural e o militantismo bem-intencionado que faz da
cultura um mecanismo bem oleado e deslizante, sem atritos, nunca foi o que a
mobilizou. O seu “activismo cultural” era parcial (isto é, tomava partido) e
fortemente crítico. O seu percurso, até ao fim, foi sempre o de caminhos
minoritários. De onde estabeleceu a sua residência, teve certamente tempo e
disposição para fazer o balanço das fidelidades e das traições. E, apesar de os
tempos não serem de feição para o tipo que ela representou, não se deu por
alguma vez se ter sentido derrotada. A Casa da Achada é um lugar vitorioso.
O livro mais representativo da obra literária de Eduarda Dionísio é certamente
Retrato dum Amigo Enquanto Falo (1979). Na sua tematização política, é um livro
do encantamento e do desencantamento revolucionários (um livro que é quase o
coágulo de uma época, tal como ela foi vivida por uma “geração lírica”), mas no
que diz respeito à “escrita”, ao “texto” (como estas palavras, quase conceitos,
eram importantes no tempo em que esse livro foi escrito!), era ainda um livro
jubilante que emergia de um ambiente intelectual movido pela força da “teoria”.
Nessa época, não era possível ler a última palavra do título, “Falo” sem pensar
na linguagem e nos conceitos da psicanálise.
António Guerreiro, Ipsilon, Suplemento do Público, 25 de Maio
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