sexta-feira, 5 de maio de 2023

QUOTIDIANOS


Chega Março e começo a observar o amadurecer das nêsperas na árvore que o meu vizinho Orlando tem no seu quintal.

Olho também, quando começam mesmo a amarelecer, as paragens que a passarada vai fazendo.

Gosto de traseiras dos prédios de Lisboa.

Cristina Carvalho, filha de Rómulo de Carvalho/António Gedeão, lembra o pai, nas noites de Verão, após o jantar, debruçar-se no parapeito da janela, olhando as traseiras: «cálida e cheirosa a noite. O céu azul escuro repleto de estrelas.»

«No parapeito da janela, as eternas violetas que regava dia sim, dia não, esperavam pela sua discreta atenção.

Ali ficava, em silêncio, a escrever. A telefonia, sempre no mesmo posto, vertia baixinho.

Às oito em ponto jantava-se. Conversava-se, então, e muito! E era bom quando de verão se abria a janela da casa de jantar que dava para os quintais das traseiras e ouvíamos, como numa reza prévia, como uma oração, as conversas das vizinhas, de janela para janela, sempre e sempre àquela hora.

A comer e a conversar, ali estávamos à mesa mais ou menos uma hora. Era como a presença do verão – a época do ano que Rómulo mais gostava – por ali, pendurado das janelas das traseiras, mais ou menos pouco tempo.« 


O prédio onde nasci, cresci, tinha traseiras e essas traseiras tinham quintais com árvores, papoilas, malmequeres, pássaros, joaninhas e gafanhotos, do prédio, onde vive há cinquenta anos, também se vêem traseiras e quintais. E é desse prédio que olha a nespereira do vizinho Orlando. O problema com as nêsperas reside no facto de terem de ser apanhadas um pouco antes de estarem no ponto, lindas, apetecíveis. Se assim não for os pássaros comem-nas. Sim, porque um pássaro, com aquele olho-de-lente é um finório, sabe o que é bom.

Os tempos vão calmos e claros de brilho primaveril e se falamos em nêsperas, em magnórios, como se diz no norte, temos sempre que desembocar no Rifão Quotidiano do Mário-Henrique Leiria

«Uma nêspera
estava na cama
Deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece»

 Não era em quintais, mas lembra-se de, em miúdo, algumas pessoas colocavam nas varandas nespereiras em vasos. Certamente que não davam frutos, mas era como uma qualquer certa nostalgia, sabe-se lá de quê.

Lembra-se de uma dessas varanda» num prédio na Graça, por cima da Leitaria Mimosa.

O prédio foi reconstruído, já não tem varandas e a Leitaria Mimosa deixou de existir

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