Já
quase não há blogues.
Ainda
frequento alguns, velhos conhecidos que têm ficado imunes à javardice que por
aí campeia.
A
Antologia do Esquecimento, do Henrique Manuel Bento Fialho é um desses blogues a que
me chego.
Este texto, está datado de 19 de Março de 2024:
EU CONHEÇO-OS
«Eu conheço-os, sei quem são, sentei-me à mesa com eles, vimos a bola juntos,
frequentamos os mesmos cafés, cruzamo-nos na rua, sim, eu sei, são primos,
gente chegada, até amigos, de outrora, de agora, cheios de raiva, consumidos
pelas frustrações pessoais, explorados em empregos de merda, na loja do shopping,
sim, onde foram parar com currículos medíocres depois de uma vida inteira a
cuspir nos livros, ler para quê, estudar para quê, pois se até os professores
são infelizes, sim, têm irmãos que queimaram as pestanas para acabarem como
caixas de supermercados, parvalhões, mais valia terem emigrado, arranjavam um
trabalho de merda na Suíça a ganharem o dobro ou o triplo do que ganham cá, a
limpar a merda dos outros, a servir à mesa, a apanhar batatas, a fazer camas
nos ferries, a ladrilhar o chão que alguém há-de pisar, cá não, isso é para os
monhés, que o trabalho é bom para o preto e eu sou filho de boa gente, até fui
baptizado, cá a gente arranja amigos, mete uma cunha, dedica-se à sucata,
constrói uma vivenda a fugir aos impostos e faz uma piscina com os fundos
sacados ao Estado, que Deus Nosso Senhor mandou-nos ser bons mas não mandou ser
parvos, cá a gente glorifica os carvalhos e os vieiras e os berardos,
frequentamos as quintas de uns e as sextas dos outros, arranjamos um bom
partido e adoramos o senhor doutor, o senhor engenheiro, até que caiam na
desgraça e se afundem para nosso espanto, quem diria, tão boas pessoas, amigos
de seus amigos, isto, enfim, uma pessoa já nem sabe com o que pode contar, e
siga, um Mercedes para exibir na aldeia, uma moto quatro para entreter os
fins-de-semana, férias no Algarve, mariscadas, bola e toiros e Quim Barreiros,
tasquinhas, feiras medievais e passadiços, uma paisagem deslumbrante no
miradouro com balancé panorâmico e faz-se a festa, que à noite temos novo
episódio do Quem quer casar com o agricultor?, e temos a Cristina e o Goucha e
a CMTV com um desfile de crimes para entreter as horas a destilar o ódio aos
pretos, aos ciganos, que isto já não se pode andar na rua, não fossem os
bombeiros e a polícia o que seria de nós, de nós e da Mónica Silva,
desaparecida para encher noticiários, a nossa telenovela da vida real, sim, eu
sei, isto aqui está tudo bem, são vidas, ai que gente, e ele é o macaco, golo,
ele é o Pinto da Costa, um senhor, até diz poemas de cor, ele são 25 mulheres
assassinadas, enfim, algumas, eh pá, eu não sou machista, mas algumas estavam a
pedi-las, eu não sou racista, até tenho amigos, pronto, assim pretos, não é,
que isto cada um é como cada qual, entre marido e mulher não metas a colher,
vai para a tua terra, a minha terra é aqui, é isto, eu sei, tanto Abril, tanta
educação, somos os melhores na bola, o Mourinho já deu o que tinha a dar, o
Ronaldo já deu o que tinha a dar, venha daí um novo Salazar, um em cada
esquina, que este país está a precisar é de um novo 25 de Abril com um Salazar
em cada esquina, para acabar com os corruptos, os outros, não eu, que eu sou
bom tipo, não faço mal nem a uma mosca, não me meto em esquemas nem conheço
quem meta, não sei, não vi, não ouvi, isso não é comigo, não tenho nada que ver
com isso, deixem-me em paz, deixem-me em paz antes que parta esta merda toda,
agora nem casa tenho, vou comer pizza, vou para fora, vou para fora cá dentro,
vou ver o RAP, vou, sei lá, comer uma bifana e arrotar postas de pescada.»