quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

OS SAPATOS NOS SAPATOS


Pé ante pé, já com a casa mergulhada em sono, o menino levantou-se e foi-se até aos sapatos para ver dos brinquedos do Pai Natal.
- Será um comboio eléctrico…? – interrogava-se, a caminho da cozinha, as tábuas do soalho range que range.
- Será um pião que toca música…? – perguntava-se metro, a metro, espiado pelo silêncio escuro das paredes.
- Será uma bola de futebol…? – movimentava-se, cauteloso, com formigueiros nos pés.
Passada a porta da cozinha, o menino sentiu um arrepio de contentamento: e, fechando os olhos, quase sem respiração, imaginou nos sapatos (tão velhos) milhares de brinquedos coloridos. Todas as montras, enfim, ali depositadas a dois passos…
Não pôde mais. Tacteou o fogão, encontrou a caixa, riscou um fósforo – e à luz da pequena chama viu nos sapatos velhos um par de sapatos novos…
Só mais tarde, depois do choro daquela noite, e ao longo dos anos do seu caminho, é que o menino compreendeu que só com sapatos seguros, os pés bem assentes no chão, erra que não erra, se pode partir à conquista das coisas belas da terra.

Pedro Alvim no “Diário de Lisboa”, de um qualquer Natal dos anos 70.

Sem comentários: