sábado, 25 de dezembro de 2010

NATAL


A cidade onde estou de mãos nos bolsos a olhar do fundo da noite,
tem muros velhos com flores macias a crescer nas fendas,
e do lado de lá do rio, barcaças, redes, pescadores e fome.
Ontem foi primavera nas margens e houve peixe,
mas agora é tudo lá tão longe
que só a primavera de ontem se adivinha.
E é da terra que falo. Sei
inegavelmente que  a húmida face da cidade tem por sobre si a lua
e que nas montras o azevinho mais o fio prateado dizem que é Natal.
Mas ignoro muito.

Os guindastes adormecem e os navios,
e as canções  da noite do Rabi contam que tudo sofre e que o perdoar é bom,
mas eu não aprendi a perdoar nem amo o sofrimento.
Longe sei que neva,
mas  deste lado é que a cidade fica
com pegadas de estivadores pelo cais
e sacos empilhados nos navios.
A beira-rio é assim e as gaivotas andam longe
e nós pouco sabemos das coisas de além muros.
(Que é Natal? e que dizer da secular mentira de nos habituarmos?)
Na montanha a noite é branca e há tristeza nos pinheiros.
Aqui é a cidade apenas.
Nem uma flor no caminho além da que lá pomos hora a hora.
O rio vai largo e ontem
a cheia pôs miséria nas terras marginais,
mas hoje é que é Natal, dizem.
Os jornais falaram e a cidade
encheu-se de coisas piedosas e de gente.
Houve esmolas aos pobres e gestos caridosos publicados,
Nocturnas esquecidas.
Dizem que este dia É,
mas eu não entendo!

Eduardo Valente da Fonseca

Poema retirado de “Natal… Natais”, antologia de Oito Séculos de Poesia Sobre o Natal, organizada por Vasco Graça Moura, “Público”, Lisboa s/d

Legenda: Pintura de Paul Cornoyer

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