sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

POEMA DE NATAL



É dia de natal a festa da família um deus nasceu
não me sinto sozinho mas estou sozinho
toda a minha família sou só eu
Levo nas algibeiras alguns versos e caminho
quando sinto de súbito o desejo de reler o herculano
a única pessoa que nos livros e na vida hoje me faz falta
única companhia para o meu natal
Entro nas poucas livrarias de peniche
e gasto em livros de herculano o dinheiro que tenho
O herculano entre outras coisas bem sabia distinguir os tempos
sabia o que num tempo é distinto de outro tempo
tinha muitos amigos entre os seus e meus antepassados
e deu sempre à verdade o que os demais costumam dar à vida
Era casmurro abandonou um dia as casas de má nota
deixou o parlamento e a vida literária
e procurou no campo a companhia
de árvores bem mais que os homens verticais
Tinha mau génio fulminava com os olhos
franzia a testa e não havia nada que fazer
era teimoso o velho como antero lhe chamava
Penso nele e caminho pelas ruas de peniche
e só vão a meu lado uma má música daquelas
que ferem os ouvidos nestas quadras do natal
e a fotografia num jornal de um elevado dignitário da hierarquia
para quem o mistério do natal não sei bem que mistério ou que natal
encerra o verdadeiro humanismo novo
frase que me provoca comoções
porquanto as aliterações são dos meus pratos favoritos
Vou encerrar-me em casa a sós com o herculano
que tanto quanto sei não era humanista
ou que se porventura o era o não sabia
ou não dizia ao menos ser tal coisa como
se duvidássemos que o fosse se é que o era
É dia de natal estou sozinho e penso ler o herculano
que há tanto ano já não me fazia
a falta que me faz precisamente neste dia
em que só me faz falta a sua companhia
Vamos para minha casa ó herculano
vou fechar as janelas acender a luz
e aguardar contigo o fim do ano
Prefiro-te herculano a músicas e altos dignitários pois
nem talvez tenha já a convicção de quem anualmente
escreve pontual se não contente o seu poema de natal

Ruy Belo

Poema retirado de “Natal… Natais”, antologia de Oito Séculos de Poesia Sobre o Natal, organizada por Vasco Graça Moura, “Público”, Lisboa s/d

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