A propósito de Freitas Santos, Linda Ronstadt e de “What’s New”
Naqueles tempos, por motivos que não vêm agora à conversa, era frequente irmos passar umas temporadas a casa dos meus sogros.
Eu estudava de noite (estudava mesmo, garanto-vos…) e chegava a casa tarde e a más horas, mas sempre a tempo de encontrar o Freitas Santos sentado no “antro do bicho”, que era como ele chamava ao espaço onde tinha a sua música e a sua biblioteca, entretido na leitura de qualquer coisa. E sempre a tempo, também, de dar dois dedos de conversa antes de me deitar, porque com o Freitas Santos a conversa fluía naturalmente, sobre tudo e sobre nada, quase sempre pelo simples prazer de conversar.
Quando me acontecia chegar mais cedo e encontrar o Freitas Santos na outra sala a ver um filme ou um qualquer programa de televisão, aproveitava para pôr a minha música em dia. É preciso esclarecer que eu já era surdo nessa altura, pelo que o nível de decibéis que provocava era sempre bastante superior ao normal…
Um belo dia, estava eu entretido a ouvir este disco da Linda Ronstadt que aqui vêem, entra-me o Freitas Santos no escritório de mansinho, senta-se no seu lugar do costume, meio envergonhado, como quem se prepara para entrar num festa para onde não fora convidado, e dispara-me à queima-roupa qualquer coisa como isto: “Há já uns tempos que ando a ouvir essa música cá em casa e acho-a muito agradável… Quem é essa fulaninha?”
Expliquei-lhe quem era a Linda Ronstadt e falei-lhe da ideia que ela tinha tido, com a cumplicidade do grande Chefe de Orquestra Nelson Riddle, de trazer para o universo da música Pop alguns dos standards da música americana que tiveram grande popularidade no auge dos tempos da Broadway e da Comédia Musical de Hollywood mas que, passada a euforia dessas décadas de 40 e 50, tendiam a ficar um pouco esquecidas e confinados ao gueto do chamado Jazz Vocal.
Talvez que Freitas Santos não conhecesse nomes como Sammy Cahn, Gordon Jenkins, Victor Young, Johnny Burke ou Bob Haggart, alguns dos autores ou co-autores das músicas escolhidas para este disco. Mas conhecia, certamente, Irving Berlin e George Gershwin, embora este último talvez mais pela “Rhapsody in Blue” do que propriamente por “I’ve Got a Crush On You” ou “Someone to Watch Over Me”, que aqui assina com o seu irmão Ira.
Só não lhe contei, porque ainda não o sabia, que Linda Ronstadt iria gravar, durante os dois anos seguintes, mais dois discos do mesmo género (“Lush Life” e “For Sentimental Reasons”), sempre com o inseparável Nelson Riddle e a sua Orquestra.
E também não lhe disse, porque muito menos o adivinharia, que este filão (re)descoberto por Linda Ronstadt nos anos 80 iria ser exaustivamente vasculhado nas décadas seguintes, onde não houve gato pingado em desespero de carreira que não tivesse procurado deitar mão ao sucesso fácil destes standards da música americana: Brian Ferry, Art Garfunkel, Robbie Williams, Rod Stewart (este, então, já vai no quinto disco…), para já não falar do inevitável Willie Nelson, são só alguns exemplos, no meio de muitos outros.
Depois de ouvir atentamente as minhas explicações, Freitas Santos respondeu-me logo algo bem ao seu estilo: “Estes americanos fizeram sempre muita merda pelo Mundo fora, mas lá Música e Cinema souberam eles fazer bem…!”
O disco ficara, desde então, à sua disposição e aconteceu-me dar com ele a ouvi-lo, sempre com um sorriso de cumplicidade.
Curiosamente e embora ele não me tenha contado nada, fiquei com a impressão de que Freitas Santos conhecia bem o sabor dessas músicas de qualquer lado…
Talvez dos dias da Rádio, embora não esteja muito bem a ver Freitas Santos sentadinho no sofá a ouvir rádio, em ameno serão familiar. Mas é possível que essa música lhe entrasse pelos ouvidos alta noite na Redacção do jornal, porque gente como eu pensa sempre que tudo pode acontecer durante a noite na Redacção de um jornal…
Ou, quem sabe, talvez que essa memória lhe viesse dos velhos tempos dos salões da Madame Blanche ou da Amélia Chinesa, onde Freitas Santos ia tomar um cházinho de vez em quando…
Texto de Luís Miguel Mira
Nota do editor: Se fosse vivo, Francisco de Freitas Santos, meu pai, faria hoje 98 anos.
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