Chega
uma altura das nossas vidas em que nos damos conta de que conhecemos mais
pessoas mortas do que vivas.
Esta
afirmação, que cito de memória, não é minha, mas sim de um dos personagens do
filme “La Chambre Verte” (1978), do François Truffaut.
Na
parte que me toca, não obstante tantos ente queridos já terem partido (pais,
irmãos, sogros, amigos, …), tenho a sorte de ainda ter a meu lado muita e boa
gente que, até agora, nunca me deixou ficar com essa terrível
sensação.
Mas
no que respeita ao Cinema, a música é outra. Quase todos os grandes Cineastas
através dos quais aprendi a amar o Cinema já partiram há muito, e isto para já
não falar dos mais veteranos, aqueles que já por cá não andavam quando eu
comecei a saber o que era o Cinema e de cuja morte nem sequer dei conta.
É
claro que subsistem alguns resistentes, uns que ainda se mantêm em atividade
(Scorsese, por exemplo) e outros que já não dão notícias há muito tempo
(Coppola, Wenders, David Lynch, Wong-Kar-Wai, …), e também aqueles que prometem
muito, mas ainda não o suficiente para que os possamos considerar “muito lá de
casa”, na feliz expressão do João Bénard da Costa.
Vem
tudo isto a propósito do recente falecimento do Peter Bogdanovich, no passado
dia 6 de Janeiro.
O
escriba de serviço no “Público” assinalou e efeméride considerando Bogdanovich
“um dos maiores realizadores do Séc. XX”, disparate que me levou
a deixar-lhe um pequeno comentário no “on line”, coisa que raramente
faço.
É
claro que Bogdanovich nunca foi um dos “maiores” e que na lista dos grandes
filmes do século passado apenas um filme por si realizado encaixa de uma forma
mais ou menos consensual: “The Last Picture Show”, de 1971, que por cá se
estreou no Caleidoscópio, no Jardim do Campo Grande, com o nome de “A Última Sessão”.
Embora eu, a título muito pessoal, também acrescente “Daisy Miller” (1974) a
essa lista, como adiante explicarei, que até me parece ter envelhecido melhor
do que o outro.
O próprio Bogdanovich seria o primeiro a rir-se com tal designação, ele que logo no seu primeiro filme (“Targets”, 1971), no qual também participa como ator no papel de um realizador de Cinema que procura convencer o velho Borlis Karloff a voltar aos écrans, tem a preocupação de afirmar, enquanto revê um velho filme do Howard Hawks na televisão, que “os bons filmes já foram todos feitos”.
Embora
a simpatia pessoal não fosse, ao que consta, uma das principais características
da sua personalidade, Bogdanovich era, para mim, um personagem importante no
mundo do Cinema e “simpático” é o adjetivo que gosto de colar a muitos dos seus
filmes.
De
onde vem, então, esta minha particular afeição para com ele?
Dos
filmes, em primeiro lugar. Ou, melhor dizendo, de alguns dos seus filmes, já
que a sua Obra me parece ser muito desequilibrada, na qual, a par de grandes
filmes, coabitam muitos outros que não tenho grande vontade de rever, sendo que
um deles até o deixei a meio, de tal maneira me estava a irritar: por exemplo,
“At Long Last Love” (1975), em que pôs Burt Reynolds a cantar Cole Porter,
“Illegally Yours” (1988) e “Noisses Off” (1992), o tal que ficou a meio. Mas
até é provável que lhes venha a dar uma segunda oportunidade, porque às vezes
estes preconceitos alteram-se com o tempo e com a idade.
Depois,
e uma coisa de que se fala muito pouco, pela qualidade da música dos seus
filmes. “A Última Sessão” é, de princípio ao fim, pautado pela música de Hank
Williams. “Lua de Papel” (1973), em termos de recurso aos “standards” da
música popular americana dos anos 30, está ao nível dos melhores filmes de
Woody Allen, o grande especialista nesta matéria. Em “Romance em Nova York”
(“They All Laughed” – 1981) e “Illegally Yours”, a eleita é a “Música Country”
(e ambos contém canções de Johnny Cash), uma das paixões do realizador, que
dedicou ao tema um filme inteiramente passado em Nashville (“The Thing Called
Love – 1993), um dos primeiros de Sandra Bullock e o último de River Phoenix).
Com
efeito, o amor de Bogdanovich pelo Cinema era tal que chegou a afirmar que “comecei
a escrever para poder ver filmes de borla – foi essa a única razão.
Juro!” (1). Uma vez François Truffaut disse precisamente a mesma
coisa…
Mas,
infelizmente, poder-se-á afirmar que a Obra de Bogdanovich é a prova acabada de
que, muitas vezes, transmitir o Amor que nos vai na Alma nem sempre é tarefa
fácil. É que essas homenagens em Cinema, diga-se de passagem, sem sempre foram
plenamente conseguidas, sobretudo no que respeita à “screwball comedy”,
como se Bogdanovich se sentisse muito mais à-vontade a evocar o Ford de “As
Vinhas da Ira” do que o Hawks de “Bringing Up Baby”/”As Duas
Feras”.
Para além disto (que já não é pouco…), sempre gostei muito de ouvir Bogdanovich falar sobre Cinema, nos inúmeros documentários em que participou e/ou realizou, a começar por esse delicioso “Directed By John Ford” (realizado em 1968 e remontado uns anos mais tarde) e continuando com os dedicados a Chaplin e a Buster Keaton. E o último filme que vi dele, poucos dias antes da sua morte, até foi um documentário, não sobre Cinema, mas sobre Música: o que dedicou a Tom Petty, em 2007.
Gostava,
igualmente, de ler as suas crónicas, quer as primeiras da revista “Esquire”,
quando ainda vivia em Nova Iorque, quer as que escreveu já em Los Angeles,
algumas das quais foram, mais tarde, publicadas sob o título de “Pieces
of Time”, que em boa hora, ia eu nos meus trinta e poucos anos, até teve
direito a tradução portuguesa.
Já
perceberam bem porque não me faltam motivos para gostar de Peter Bogdanovich, a
quem fiquei a dever conhecer um pouco melhor as obras de John Ford, Fritz Lang,
Allan Dwan e Orson Welles, para me cingir aos livros que dele tenho.
Mas
a verdade é ainda tenho um outro motivo de gratidão para com ele.
Parece
que, à sua época, o filme foi um fracasso de crítica e de bilheteira, mas eu
desde a primeira hora que fiquei encantado com “Daisy Miller”, que realizou em
1974, e que vi no saudoso Apolo 70, se a memória não me falha.
“Daisy
Miller” é um “filme de época”, baseado na obra homónima de Henry James
publicada em 1878 e alvo de uma nova edição revista em 1909. É o único
verdadeiro “filme de época” de Bogdanovich, e costumo dizer que está para a sua
obra como “A Idade da Inocência” (1993) está para a de Scorsese. E se quisermos
entrar no jogo de saber quem é que Bogdanovich pretende homenagear com este
filme, eu direi que é o Orson Welles de “The Magificent Ambersons”/ “O Quarto
Mandamento” (1942).
Como
tantas vezes sucede na obra de Henry James, o filme é uma oposição entre dois
mundos, um aparentemente mais frívolo e libertino (a América) e outro onde o
peso dos bons costumes e das convenções sociais ainda imperam fortemente (a
Europa, mais concretamente a Inglaterra). Para além disso, o filme ilustra,
igualmente, uma oposição de classes no interior da própria América, entre uma
suposta “aristocracia” mais antiga e mais clássica (como se os primeiros
pioneiros na América tivessem alguma coisa de aristocratas…!) e uma nova
burguesia muito endinheirada, mas pouco culta.
“Daisy
Miller” é um filme nostálgico, um melodrama triste e suave, um “filme de amor”
sem um único beijo e sem um único abraço, onde só contam os olhares. Um Amor
falhado, uma oportunidade perdida, mas daquelas que nos deixam o resto da vida
a pensar nelas… Acaba mal, termina num cemitério e já sabem que, para
mim, filmes que comecem ou acabem em cemitérios é meio caminho andado…
A
fotografia é fabulosa, a reconstituição da época excelente, os locais da
rodagem belíssimos, e penso que Cybill Shepherd nunca esteve tão adorável como
neste filme.
E,
embora já me tenha esticado demasiado, começamos a aproximar-nos, agora, de
mais um dos pretextos para este texto.
Já vos falei muitas vezes desses meus súbitos desejos de visitar lugares que encontro nos filmes.
Esse
desejo nada tem a ver com a mera “beleza turística” desses locais. Tenho visto
paisagens fabulosas em filmes descartáveis, e essas belezas entram-me por um
olho e saem pelo outro.
Para
eu sentir essa urgência de visita é necessário que o filme me diga alguma
coisa. Não tem de ser uma obra-prima e às vezes uma ou outra cena de um filme
até fracote é suficiente para me ficar a mexer na cabeça. Já uma vez vos contei
que tive a certeza de que iria fazer a estrada costeira de Big Sur, na
Califórnia, única e simplesmente depois de ter visto as imagens iniciais do
“The Sandpiper”, do Vincente Minnelli, que nem é um grande filme… E acabei por
satisfazer esse desejo duas vezes, com um intervalo de vinte e sete anos
É
uma forma de continuar a amar esses filmes, de uma maneira mais pessoal. De os
levar sempre comigo num canto da memória. Se quiserem, um desejo “voyeurista”
de estar a espreitar ali mesmo, onde as coisas aconteceram: ver John
Wayne a pegar em Natalie Wood ao colo no “The Searchers”; estar ali
escondido quando Kim Novack se lançou às águas da baia de São Francisco, no
“Vertigo”; ter acabado de tomar o banho - que na realidade tomei -
no riacho de Cathedral Rock, em Sedona, imediatamente antes do Delmer
Daves ter feito aquele fabuloso plano do James Stewart a abraçar a Deborah
Paget no “The Broken Arrow”, um dos mais belos de todo o “western”.
Pois
com “Daisy Miller” aconteceu-me exatamente o mesmo.
Durante
muitos anos aquele castelo à beira de um lago por onde passeava uma rapariga
vestida de branco com uma sombrinha na mão, que parecia saída da neblina
de um quadro do Noronha da Costa, povoava os meus sonhos de viagem. E o
barco a vapor do séc. XIX a atravessar o lago… E o “Hotel des Trois Couronnes”…
Eu
já vos disse que o desejo não é simplesmente “turístico”, mas se o fosse até
teria o seu perfeito alibi cultural. Ora vejam lá como o próprio Henry James,
qual guia turístico, inicia a sua novela:
“Na
pequena cidade de Vevey, na Suiça, existe um hotel particularmente confortável;
na verdade, existem muitos hotéis, pois a receção de turistas constitui o
negócio dessa localidade que, como muitos viajantes recordarão, se situa à
beira de um lago invulgarmente azul – um lago que qualquer turista deverá
visitar.”
(2)
O
ambiente desses hotéis é descrito por Henry James nos seguintes termos: “Há
um esvoaçante cruzar de jovenzinhas vestidas à moda, um sussurrar de
folhos de musselina, um matraquear de música de dança durante a manhã, o som de
agudas vozes a qualquer hora”. (3) E no que respeita ao “Trois Couronnes”, onde
o livro/filme decorrem, acrescenta ainda: “impecáveis criados alemães que
mais parecem secretários de legação; princesas russas sentadas no
jardim; rapazinhos polacos passeando, levados pela mão, com os seus
preceptores; a vista do nevado cume do Dent du Midi e as torres pitorescas do
Castelo de Chillon”. (4)
Se
a cidade é Vevey, o lago “invulgarmente azul” é o Lago Léman e o “Hotel des
Trois Couronnes” está lá, à beira do lago, desde 1842.
Quanto
ao castelo das “torres pitorescas”, trata-se do “Chateau de Chillon”, que passa
por ser um dos monumentos suíços mais visitados. Está carregadinho de História,
mas não vos vou maçar com isso porque quem não a conhecer e estiver interessado
tem facilmente meio de lá chegar em muito pouco tempo. Acrescentarei apenas
que, pela sua beleza arquitetónica e pela sua localização privilegiada nas
margens do lago, envolvido pela neblina que por vezes das suas águas emana,
este castelo proporciona uma “visão romântica” por natureza, e por isso, ao
longo dos tempos, inspirou tantos poetas de tantas nacionalidades. O próprio
Bogdanovich parece bem consciente do poder dessa visão porque, numa entrevista
que concedeu por ocasião do lançamento do filme, afirma que para ele “era
muito importante que Chillon fosse algo que o público recordasse com um
certo grau de prazer”. (5)
Todo
este cenário é belíssimo, como poderão ver por algumas fotografias que vos
mostro. Com Cybill Shepherd a passear nele vestida de dama antiga, imaginem o
que não será…
Apenas
um terço do filme se passa na Suíça, decorrendo o restante em Roma. Também por
lá andei à procura daquele jardim no cimo de uma colina que aparece no filme.
Subi a várias colinas, mas em nenhuma delas reencontrei a memória cinéfila do
filme, um lugar que só mais tarde vim a saber tratar-se da Colina do Pincio,
que nem era muito longe dos jardins da Villa Borghese, por onde andei.
Seria sempre um bom pretexto para voltar a Roma, se ela necessitasse de
pretextos desses para ser (re)visitada…
Por
“Daisy Miller” e por tudo o mais que aqui mencionei sinto-me muito grato a
Peter Bogdanovich, e é com prazer que lhe dedico esta pequena
homenagem.
Que
descanse em Paz, signifique lá isso o que significar…
- Peter Bogdanovich,
“Nacos de Tempo”, Livros Horizonte, 1986, pág. 12
- Henry James,
“Daisy Miller”, Editora Arcádia (1977), pág. 19
- Idem, pág. 20
- Idem
- Entrevista a
Martin Rubin feita em 18 e 19 de Fevereiro de 1974, constante de (2), pag.
160
PS:
Por
feliz coincidência, a cidadezinha de Vevey, na Suíça, foi o lugar escolhido por
Charles Chaplin para viver os últimos vinte e cinco anos da sua vida, o que
será, certamente, pretexto para outras conversas.
PS2:
Para
perceberem que o prazer que este filme me proporciona não esmoreceu com a
passagem do tempo, ao revê-lo agora em DVD apeteceu-me roubar algumas
fotografias à televisão.
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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