“The measure of love is what one is willing to give up
for it”
Numa praia algures no
Sul de Espanha, pescadores retiram as suas redes do mar e alguém repara que,
juntamente com a faina diária, foram retirados das águas dois corpos
entrelaçados de um homem e de uma mulher.
Alertadas pelo
estranho acontecimento, que faz tocar os sinos da igreja, as gentes do povoado
ocorrem à praia, entre elas um velho arqueólogo que irá assumir o papel de
narrador. É então que a história nos começa a ser contada, em “flashback”,
e a primeira coisa que o narrador nos diz é o que escolhi para epígrafe, ou
seja, que a medida do amor é tudo quanto estejamos dispostos a perder por ele.
E desde logo ficamos a suspeitar que, na história que nos vai ser contada,
alguém, por Amor, esteve disposto a perder muita coisa…
A história será a de
Pandora Reynolds, uma cantora americana que percebemos ter pisado os palcos de
Londres e de Nova Iorque, mas que não fazemos a mínima ideia (nem jamais
ficaremos a fazer…) do que faz perdida naquele porto piscatório de Esperanza,
no Sul de Espanha. Nem ela nem a estranha “entourage” de amigos que a
acompanham e que mais parecem exemplares de uma geração perdida saída de um
romance de Scott Fitzgerald.
Na primeira vez que a
vemos, Pandora está sentada ao piano com um fabuloso vestido prateado a tocar e
a cantar o “How Am I to Know”, de Jack King e Dorothy Parker:
“But oh,
How am I to know
Can it be that
love
Has come to stay
here?”
Se está ansiosamente
à espera de um amor, não é, certamente, o de um amigo poeta que a acompanha e
que a pede em casamento (percebemos que pela enésima vez…) o que ela, uma vez
mais, recusa, levando-o, pouco depois, a suicidar-se com veneno misturado num
copo de vinho.
Pandora não demonstra
qualquer arrependimento pelo sucedido, e esta é a primeira de muitas desgraças
que acontecerão à sua volta.
O poeta suicida-se,
um corredor de automóveis que durante dois anos preparara uma viatura para
tentar bater um recorde de velocidade atira viatura do alto de uma falésia,
apenas porque ela assim o pedira como prova do seu amor, um toureiro morre em
plena praça, …
À primeira vista
Pandora parece-nos ser uma mulher má, muito má… Embora suspeitemos de que
é alguém que nunca foi muito feliz nos amores, não conseguimos entender o que
lhe vai na Alma. Mas a verdade é que também logo no início do filme o narrador
já nos avisara que “to understand one human’s soul is like trying to
empty the sea with a cup”.
Não vos irei maçar
contando-vos todas as peripécias do filme, mas dir-vos-ei, apenas, que ele
entrelaça o mito grego de Pandora com a lenda do “Holandês Voador”, que terá
nascido há séculos atrás e que foi celebrada pela Cultura europeia em muitas
obras, a principal das quais talvez tenha sido a ópera de Wagner “O Navio
Fantasma”.
Na mitologia grega
Pandora foi a primeira mulher, aquela que tinha em seu poder a boceta que, uma
vez aberta, deu origem a todas as desgraças que vieram a ocorrer no Mundo. Mas
Pandora ainda foi a tempo de fechar a caixa, de forma a que, dentro dela,
permanecesse a Esperança.
O “Holandês Voador” matou
a sua mulher no Séc XVII, acusando-a, injustamente, de infidelidade. Por isto,
e por ter blasfemado contra Deus, foi condenado à maldição da vida eterna,
vagueando sozinho no seu veleiro durante séculos como um fantasma, e sendo-lhe
apenas permitido vir a este Mundo de sete em sete anos, por períodos de muito
curta duração. Se nalgum desses momentos na companhia dos vivos uma mulher, por
amor, aceitasse morrer por ele, a sua maldição terminaria.
Já se percebeu quem
será a Pandora da história e o Holandês Voador chegará pouco tempo depois,
fundeando o seu magnífico veleiro ao largo de Esperanza.
E se atrás referi que
a Esperança foi a única coisa que ficou dentro da boceta de Pandora, é por ser
a Esperança o fio condutor que parece atravessar todo o filme. Esperança do
Holandês em encontrar a mulher que o liberte da sua maldição; Esperança de
Pandora em encontrar o tal Amor Verdadeiro que parece evocar na sua canção,
logo no início do filme. E também não será por mero acaso que tudo se passa num
lugar imaginário chamado Esperanza…
É claro que a
Esperança se concretiza e que Pandora e o Holandês se irão apaixonar
perdidamente um pelo outro e é também claro que ela, entretanto conhecedora de
toda a sua história, irá aceitar conceder a sua vida para o libertar da
maldição que há séculos o atormenta. E é abraçados que os iremos encontrar, já
no final do filme, quando ela lhe pergunta quanto tempo ainda lhes resta. Um
ano? Um mês? Uma semana? Um dia…? Seria tão bom se ainda houvesse algum tempo
mais…! O Holandês não lhe responde, mas olha para o lado e vê que o último grão
de areia na ampulheta que simbolizava a sua vida se esfumou. E, nesse preciso
momento, uma enorme tempestade se levanta e o mar acabará por engolir o veleiro
nas suas águas.
Já perceberam, agora,
que são deles os corpos entrelaçados que os pescadores retiraram do mar no
início do filme.
A quem me vier dizer
que não é possível dois amantes morrerem abraçados, andarem a vaguear pelas
águas e virem dar à costa assim abraçados, eu direi que é, sim senhor … É essa
a metáfora do Amor real, infinito e fora do tempo a que Pandora alude nas suas
últimas palavras …. Como se o Verdadeiro e Único Amor só pudesse ser aquele que
termina na morte dos amantes.
Pandora – acabámos de
o perceber - é Ava Gardner, o Holandês é James Mason (ah, a voz de James
Mason neste filme…!) e os restantes são, maioritariamente, atores
ingleses hoje pouco conhecidos, já que o filme foi uma produção inglesa. O
realizador foi Albert Lewin, que não deixou uma filmografia muito extensa
(apenas seis filmes), mas que era conhecido por ser um dos realizadores
americanos mais cultos e eruditos.
O filme é um objeto
estranho, por vezes até bizarro, banhado por um clima onírico, fantástico e
surreal e impregnado de uma poética de “amor louco” tão cara ao seu autor, que
era amigo íntimo dos principais Surrealistas franceses da sua época.
Acabei de vos dizer
que Pandora era Ava Gardner. Mas não… É muito mais do que isso… É Ava
Gardner pela primeira vez em “Technicolor”, numa beleza fulgurante como raras
vezes a vimos depois, ao ponto de João Bénard da Costa ter escrito que “ninguém
que não tenha visto Pandora pode alguma vez perceber quem foi Ava Gardner”
**.
Chegados aqui,
provavelmente já terão percebido que tenho uma “pancada” muito especial por
este filme, eu que tanto aprecio melodramas e “filmes de amor”. É verdade que
sim e que ele seria um dos que, sem pestanejar, levaria para a tal ilha
deserta.
Mas, contada a
história do filme, deixem-me também contar-vos agora a história desta minha
relação muito especial com Pandora.
Um dia, já lá vão
vinte e três anos, fui a Sitges, perto de Barcelona, participar num Congresso
de Responsáveis de Recursos Humanos da minha Empresa, uma multinacional francesa.
Fui acompanhado, nessa viagem, por um outro colega que, para além disso, era
também meu amigo pessoal de longa data.
O Congresso teria
lugar de quarta a sexta-feira de manhã, pelo que de imediato imaginámos a
possibilidade de permanecer por aquelas bandas durante o fim de semana e
usufruir das belas paisagens e da boa gastronomia da Catalunha.
Para não ficarmos
sozinhos, desafiámos a juntarem-se a nós a minha Mulher e a namorada do meu
amigo. E, como sempre gostávamos de juntar a um fim-de-semana gastronómico um
alibi cultural, decidimos fazer o circuito do Salvador Dali na Costa Brava,
começando pela sua casa de campo (o Castelo de Púbol), prosseguindo para o
Museu Dali de Figueres e acabando na casa de praia de Port Lligat.
O fim-de-semana
correu lindamente, e não foi só feito de petisqueira e de Dali. Lembro-me, por
exemplo, de uma magnífica exposição de Raoul Dufy vista no Museu Picasso de
Barcelona. Mas não é esse o principal tema desta história.
A meio da tarde de
sexta-feira fomos buscar as nossas companheiras ao Aeroporto de Barcelona e
seguimos viagem para Norte, pela costa, em direção a França.
Não tínhamos
programado um poiso concreto para dormida e navegávamos ao sabor do vento. Mas,
após algumas tentativas goradas, aportámos a um lugarejo de que nunca tínhamos
ouvido falar chamado Tossa de Mar, uma estância balnear de pequena dimensão
situada entre duas colinas que tinha, numas das suas extremidades, um pequeno
hotel localizado mesmo em cima do areal que nos seduziu.
Com todas as voltas
que demos já era tarde e tempo apenas para fazer o “check-in”, depositar as
malas nos quartos e zarpar em busca de um restaurante para jantar.
Relativamente perto encontrámos um que nos pareceu agradável, também junto à
praia e com uma enorme janela voltada para o mar. O jantar foi prolongado
porque a cataplana que pedimos levou o seu tempo a confecionar, a conversa
fluía agradavelmente, bebemos bem e não tínhamos qualquer pressa, uma vez
que o problema do alojamento já estava resolvido. A vantagem de se estar
em Espanha é que o que para nós parece ser tarde, para eles é muito cedo. E
ainda me lembro muito bem que, para escândalo dos meus companheiros de viagem,
pedi para darem um calorzinho ao caldo que sobrou da cataplana e, para
assentar, comi-o como se de uma sopinha se tratasse…
Quando saímos era já
muito tarde e as senhoras não demonstraram grande empenho em dar um passeio
pelo povoado, pelo que regressámos ao hotel. Aí chegados, o bar já se
encontrava encerrado, o que não nos impediu de nos servirmos do que nos
apetecesse, tal como na Receção nos tinham aconselhado. Se bem me lembro, enchi
um copo generoso de uma Reserva Especial Carlos I que por lá havia, acendi um
charuto e sentei-me na varanda do meu apartamento, com as pernas esticadas em
cima de uma cadeira, enquanto a minha Mulher, já cansada da viagem, se foi
deitar.
Por ali me deixei
ficar durante muito tempo. A noite de finais de Junho estava aprazível, o vinho
do jantar, o conhaque e o fumo do charuto a esvoaçar pelo ar começaram a
produzir o seu efeito, fazendo com que de mim se apossasse uma agradável moleza
e uma sensação de bem-estar, embalada pelo bater das águas do mar ali tão
perto, que se deixavam ouvir até por um surdo como eu.
Ao fundo na paisagem
via a outra ponta da praia, as luzes do povoado e, no alto de uma pequena
colina sobre o mar, aquilo que me pareciam ser as ruínas de um velho castelo
meio destruído pelo tempo, iluminadas de um amarelo quente que dava a todo
aquele cenário um ar de conto medieval.
Nunca mais de esqueci
dessa noite e ainda hoje, tendo voltado já tantas vezes a Tossa de Mar, ela não
me sai da cabeça.
Uns tempos mais
tarde, já em Lisboa, fui à Cinemateca rever “Pandora”, o filme de Albert Lewin
que me recordava de já ter visto, alguns anos antes, na televisão. Mas ver esse
filme na televisão e, ainda por cima, a preto e branco, como me lembrava,
equivale a nunca o ter visto… De repente, dei um salto na cadeira… Embora
o povoado estivesse muito diferente daquele que tinha visitado, a praia me
parecesse muito mais larga e o castelo mais bem conservado, parecia-me ser
Tossa de Mar o lugar onde o filme se passava. Naquele tempo não havia Internet
e uma dúvida que hoje se dissipa em poucos minutos na altura deu-me um
trabalhão a esclarecer. Vasculhei tudo quanto tinha em casa e lá acabei por
encontrar a confirmação de que aquele povoado que no filme se chamava Esperanza
era, efetivamente, Tossa de Mar.
Se já estava
apaixonado pela terriola antes de a associar ao filme, depois desse dia ainda
mais apaixonado fiquei.
Depois disso, como
vos disse, tenho voltado frequentemente a Tossa de Mar e fiquei a saber muito
mais coisas acerca do filme e da sua rodagem. Umas com interesse, outras nem
por isso.
Muito embora isso
seja um “fait divers” que não tem qualquer relevância para o interesse
do filme, também fiquei a saber, por exemplo, que não é possível falar dele sem
evocar a história de Mário Cabré, o toureiro espanhol que também entra no filme
(e o estraga nas partes em que entra…) e com o qual se conta que Ava Gardner
terá andado enrolada durante as filmagens, ao ponto de obrigar Frank Sinatra,
seu namorado na altura e futuro marido, a vir de propósito dos Estados
Unidos para pôr ordem na caserna. Deu brado, na época, nas revistas
“côr-de-rosa”…
Nas suas “Memórias”
Ava trata Cabré como um “espanhol insuportável”, mas sempre vai dizendo
que “cometi um simples erro que se transformou numa asneira de grandes
proporções. Depois de uma daquelas noites espanholas cheias de estrelas, de
danças e de copos, acordei no dia seguinte ao lado de Mário Cabré. Foi a
primeira e última vez…”. ***
Acontece a muito boa gente, direi eu… E só tenho pena de não me ter acontecido a mim…!
O filme, esse ficou
como um dos meus filmes de cabeceira, como já vos disse.
Lembro-me muito bem
que uma vez, num jantar de amigos em minha casa, resolvi passá-lo enquanto
ainda estávamos todos à mesa, embora já no final da refeição. Eram os tempos da
Bica, a noite estava quente e as janelas escancaradas sobre o rio, de onde
subia, de tempos a tempos, uma aragem reconfortante. Conforme o filme ia
avançando eu parava a imagem durante muito tempo, mantendo-a como imagem de
fundo. Pandora ao piano com aquele fabuloso vestido prateado; Pandora a nado a
caminho do navio do Holandês Voador; Pandora já no barco enrolada no pano de
uma vela e, depois, no roupão amartelo; Pandora, já no fim do filme, com aquele
“inadjectivável” (obrigado João Bénard…!) vestido preto em forma de pontas de
lança... Naquele tempo as senhoras ainda não tinham inventado a peregrina
ideia de que o fumo do charuto era uma coisa horrorosa que se entranhava em tudo,
até nos cortinados e no seus próprios “soutiens”, pelo que o fumo esvoaçava
livremente pela sala enquanto se enchiam e se despachavam as “flutes”
de espumante e se poisava o olhar em Pandora.
Noite memorável,
também essa…
Sempre que passo por
Tossa de Mar vou ver a estátua de Ava Gardner, no interior do castelo de que
vos falei, e prestar-lhe a minha singela homenagem. Nem sempre calha dar-lhe um
abraço, mas às vezes acontece…
É que poderá o
Holandês Voador ter sido libertado da sua maldição de viver eternamente, mas eu
ficarei até ao final dos meus dias assombrado pela visão de Pandora e de Ava
Gardner e pela memória daquela noite.
*Texto constante de
“Albert Lewin”, de Patrock Brion, Éditions Durante (2002), pág. 175
** ”Escritos
Sobre Cinema”, Tomo I, 4º Volume, Edições da Cinemateca (2021), pág. 127
*** ”Ava – A Minha História”, Publicações Europa-América (1990), pág. 133
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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