A
América tratou, muitas vezes, a pontapé alguns dos seus melhores filhos, bem
como outros que, como Charles Spencer Chaplin, embora não tivessem nascido lá,
aí passaram uma boa parte da sua vida profissional.
Entre
os principais responsáveis por essa perseguição estava, quase sempre, uma
figura triste e sinistra que dava pelo nome de Edgar Hoover, o todo-poderoso
patrão do FBI.
Hoover
tomou Chaplin de ponta. Acusou-o de ser imoral e comunista, que era aquilo que
numa determinada época se dizia de alguém que se declarasse humanista e
antibelicista.
Desde
quando não se sabe bem ao certo, mas é muito provável que um dos primeiros
sobressaltos de Hoover tenha surgido em 1936 com “Os Tempos Modernos”. Aquela
crítica a uma Sociedade que utiliza os avanços da tecnologia, não para libertar
e dignificar o trabalho do Homem, mas para o escravizar ainda mais,
transformando-o numa mera peça de uma complexa engrenagem industrial imposta em
nome de uma busca desenfreada do maior e mais rápido lucro possível, não lhe
deve ter caído muito bem…
Como
bem também não lhe caíram, certamente, as posições assumidas por Chaplin em
favor da entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial e o manifesto apoio
que então deu aos soviéticos.
O
discurso final de “O Grande Ditador”, de 1940, feito por um pobre barbeiro
judeu perigosamente parecido com Adenoid Hynkel, o ditador da Tomânia, por sua
vez perigosamente parecido com Adolf Hitler, pode muito bem ter sido a gota de
água que fez transbordar o copo.
Apetecia-me
espetar aqui todo esse discurso, que não só está cada vez mais adequado aos
tristes tempos que atravessamos, como é essencial para compreendermos o
pensamento e os Valores pelos quais Chaplin se regia. Mas é demasiado extenso e
não vos quero maçar..
Deixarei
apenas alguns extratos, exemplos de coisas que devem ter deixado Hoover com os
poucos cabelos que tinha em pé:
……………………………………………
“Não
quero governar nem conquistar ninguém.
Gostaria de auxiliar toda a gente – se possível: - os Judeus, os Gentios…, os
Pretos…os Brancos.
Queremos todos ajudar-nos uns aos outros. Os seres humanos são assim. Queremos
viver a felicidade dos outros e não a sua infelicidade. Não queremos odiar nem
desprezar ninguém.
Neste
mundo há lugar para toda a gente. E a boa terra é rica e pode prover às
necessidades de todos.
……………………………………………………………………………………………………………...
A
nossa ciência tornou-nos cínicos; a nossa inteligência cruéis e impiedosos.
Pensamos de mais e sentimos de menos. Precisamos mais de humanidade que de
máquinas. Se temos necessidade de inteligência, temos ainda mais necessidade de
bondade e de doçura. Sem essas qualidades, a vida será violenta e tudo estará
perdido.
……………………………………………………………………...
Vós,
povo, tendes o poder… o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade!
Vós, povo, tendes o poder de tornar a vida livre e bela, de fazer desta vida
uma aventura maravilhosa. Portanto, em nome da democracia, usemos desse poder.
Unamo-nos. Lutemos por um mundo novo, um mundo que conceda a todos os homens a
possibilidade de trabalhar, que dê futuro à juventude e segurança à velhice.
Foi
prometendo-nos tudo isto que os tiranos tomaram conta do poder. Mas eles
mentem. Não cumprem as promessas. Não as cumprirão nunca! Os ditadores
libertam-se, mas tiranizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, para
derrubar as barreiras entre nações, para acabar com a cupidez, o ódio e a
intolerância. Lutemos por um mundo guiado pela razão, um mundo em que a ciência
e o progresso conduzam à felicidade universal. Soldados, em nome da democracia,
unamo-nos.” (1)
Não,
não eram Putin ou Donald Trump os destinatários desta mensagem, embora os
ditadores (ou aprendizes de …), por maior e mais vistosa que seja a sua poupa
ou pequeno o bigote, se assemelhem todos, perigosamente.
Retomando
a nossa conversa, quando o seguinte filme de Chaplin (“Monsieur Verdoux”) viu a
luz do dia, em 1947, já o FBI tinha iniciado uma investigação oficial cujo
único objetivo seria conseguir que o indesejável cidadão inglês Charles Spencer
Chaplin fosse expulso dos Estados Unidos.
Para
além do tema central do filme ser, para alguns, chocante e com duplos sentidos
muito dúbios (um velhote astuto que casa com mulheres ricas para depois as
matar e ficar com o seu dinheiro…), Chaplin atacou, de uma penada, dois dos
pilares onde assentava a Sociedade Americana: a Igreja e a Indústria do
Armamento.
No
final do filme, a um padre que o vai visitar à prisão para, supostamente, lhe
dar a extrema unção, Monsieur Verdoux estende-lhe a mão e pergunta-lhe,
sorridente: “Ora diga lá, meu irmão, o que é que eu posso fazer por
si…?”. E, depois, larga aquela célebre tirada de que uma morte faz um
assassino, milhares um Herói.
Uns
Estados-Unidos recém-saídos de uma guerra devastadora, orgulhosos dos seus
heróis que acabavam de regressar a casa, iriam ter uma enorme dificuldade em
engolir uma tirada destas, e não é por acaso que “Monsieur Verdoux” foi o filme
de Chaplin que pior acolhimento teve no seu país.
E
quem mais o atacou foram os suspeitos do costume: os jornais da Cadeia Hearst
(a “Fox News” da época…), as senhoras da Legião Católica, a Liga dos Antigos
Combatentes, todos o acusavam de ser um depravado, um simpatizante comunista e
um ingrato para com tudo o que a América e o seu povo lhe deram. Quanto ao
filme, esse foi boicotado, com permanentes ameaças aos exibidores que ousassem
passá-lo e constantes manifestações defronte de muitas das salas de Cinema que,
apesar de tudo, teimassem em o mostrar.
Por
tudo isto, e ao mesmo tempo que mais em escândalo de saias vinha a público, com
reivindicações de paternidade (o processo Joan Barry, do qual sairia
completamente ilibado), a popularidade de Chaplin na América já havia conhecido
melhores dias...
Mas
Chaplin não se escondia e nunca fez silenciar a sua voz. Criticou abertamente a
“caça às bruxas”, a perseguição aos comunistas feita pelo Senador Joseph
McCarthy, a coberto das competências da “House Un-American Activitees
Committee”, o que fez aumentar ainda mais os rumores de que seria, também, um
deles.
Algumas
pessoas mais próximas de Chaplin, como a sua ex-mulher, Paulette Goddard, foram
chamadas a testemunhar perante o Comité, e dizia-se, na altura, que também ele
o seria muito em breve, o que, na realidade, nunca chegou a acontecer.
Em
1952 concluiu a rodagem de mais um filme, “As Luzes da Ribalta” e decidiu que
faria a sua estreia mundial em Londres, já que era lá que toda a história se
passava.
E
partiu no Queen Elizabeth, acompanhado por toda a família.
No
seu íntimo, Chaplin estaria convencido de que muito dificilmente iria poder
regressar aos Estados Unidos, mas talvez ainda mantivesse uma ténue esperança.
Os
seus piores receios confirmaram-se já a meio da viagem quando, numa noite em
que estava a jantar com o pianista Arthur Rubinstein, recebeu um telegrama em
que, nas suas próprias palavras, o informavam que “a entrada nos Estados
Unidos me era vedada e que, antes de poder lá voltar, devia comparecer
na Comissão de Inquérito do Serviço de Imigração a fim de responder às
acusações de depravação política e moral”. (2)
Chaplin só voltaria aos Estados Unidos vinte anos depois, em 1972, para receber, das mãos de Jack Lemmon, um Óscar Honorário pela sua Carreira.
Edgar
Hoover ganhara a batalha e deve ter dado pulos de contente.
Durante
uns tempos Chaplin e a sua família viveram divididos entre Londres, Paris e
Roma, à medida que ia sendo feita a apresentação do filme. A ideia de uma
instalação definitiva em Inglaterra foi abandonada, não só por ter considerado
que o clima não seria o mais adequado para as crianças, habituadas ao Sol da
Califórnia, mas também por receios relacionados com a “restrição de divisas”
(3).
Foi
então que um amigo lhe aconselhou a Suíça, tendo ficado algum tempo instalado
no “Hotel Beau Rivage”, em Lausanne, à beira do Lago Léman , enquanto que com
vagar procurava uma nova casa. Mas a mulher, Oona, que se encontrava grávida de
um quinto filho, encostou-o à parede e “declarou, categoricamente que,
depois do parto, não queria voltar para o hotel” (4).
A
procura da casa foi apressada e o casal acabou por escolher o “Manoir de Ban”,
na aldeia de Corsier, mesmo à entrada da pequena cidade de Vevey de que vos
falei no último texto. Uma casa enorme com 24 quartos/salas distribuídos por
três andares, onde iria viver o resto dos seus dias
Sou
suspeito porque, tal como muitos da minha geração, sempre nutri um grande
carinho pelo Charlot da minha infância. Ele foi a nossa alegria, a nossa
felicidade, a certeza, naquela tenra idade, de que era mesmo bom viver.
Durante
anos a fio sempre fui dizendo que era Chaplin o meu realizador preferido. Os
tempos passaram e hoje já não estou assim tão certo, mas se tivesse de escolher
a Obra de um só cineasta para mostrar aos extraterrestres o que é o Cinema,
muito provavelmente escolheria a de Charles Chaplin. Está lá tudo quanto é
preciso saber: a Alegria, a Tristeza, o Amor, a Solidariedade, o respeito para
com o Ser Humano, mesmo quando, por vezes, era necessário dar um pontapé no
rabo de um polícia e escapar-lhe por debaixo das pernas…! A profunda gargalhada
e a lágrima ao canto do olho, por vezes no interior do mesmo plano.
É
certo que, numa perspetiva de “linguagem cinematográfica”, Chaplin sempre foi
muito conservador. E mesmo no que respeita à utilização do som ele foi, como se
sabe, o último dos resistentes. Mas isso não valeria a pena contar aos
extraterrestres…
Eu gostava tanto do Charlot que quando me comecei a deslocar ao estrangeiro mais regularmente era, quase sempre, para ir a Londres comprar discos, mas nunca regressava a casa sem trazer comigo duas ou três das suas curtas-metragens. Ainda não havia cassetes e, muito menos, DVD’s. Era no tempo do Super-8 e esses pequenos filmes de menos de meia-hora de duração têm a honra de terem sido os primeiros da minha já muito extensa coleção privada.
Uma
vez fui à Cinemateca ver um excelente documentário sobre Chaplin. Não garanto o
nome porque nunca mais o voltei a ver, mas julgo que se tratava de “The
Gentleman Tramp”, iniciado por Peter Bogdanovich em 1976 e concluído por
Richard Patterson com o apoio de Walter Matthau, que lhe dá a voz.
Os
últimos minutos deste documentário são feitos com recurso a filmes caseiros da
própria Família Chaplin, sem utilização de qualquer “voz off” e apenas com o
ruído típico de um projetor de Super- 8 a trabalhar. Vemos Chaplin já na sua
casa de Vevey, rodeado pela família e a brincar com os filhos, alguns ainda de
muito tenra idade. Ria-se, pecava neles ao colo, punha-os aos ombros, fazia
palhaçadas, caretas e passos de dança imitando Charlot. Depois, mesmo no final,
Oona, a mulher, dava-lhe o braço e levava-o a passear pelo jardim até ao
extremo da propriedade, e ele lá ia devagarinho, apoiado numa bengala e
percebemos que já com alguma dificuldade no andar, até o filme acabar num
fundido em negro.
Essas
últimas imagens tocaram-me profundamente. Eu estava fragilizado e em processo
de separação e não sei o que mais me terá comovido. Aquela bonança depois da
tempestade que foram os últimos anos na América…? Aquela enorme sensação de
harmonia familiar…? Aquele momento de ternura com a mulher a levar Chaplin pelo
braço pela estrada fora, idêntica à que vimos no final de tantos filmes do
Charlot…? Ou ter-me-á o ruído do projetor Super-8 feito recordar as
projeções que eu próprio fazia para as minhas filhas, quando eram mais pequenitas…?
Sinceramente,
não sei… Talvez que tudo isso junto...
O
que sei é que desatei a chorar que nem uma Madalena… Não que apenas me tivessem
vindo lágrimas aos olhos, porque essas, felizmente vêem-me com muita facilidade
no Cinema. Nada disso… Um profundo nó na garganta, a soluçar e a chorar
compulsivamente… Felizmente que a sala estava meio vazia e eu estava no
meu habitual lugar lá mais para trás, senão teria passado pela vergonha de
alguém se aproximar de mim e me oferecer ajuda…
Longe
estava eu de imaginar que um dia, muitos anos mais tarde, na companhia da
Cristina, também eu iria estar ali naquela mesma casa, naquele mesmo jardim e a
percorrer aquele mesmo caminho que vira Chaplin fazer com a sua mulher.
É
que, desde 2017, a antiga casa de Chaplin, bem como o espaço adjacente, foi
transformada em museu sob a designação de “Chaplin’s World” e aberta ao
público. Mas disso vos darei conta noutra oportunidade.
Em
Vevey Chaplin não vivia como um eremita. Recebia a Família, os muitos amigos
que tinha, as grandes personalidades que o desejavam visitar, muitas vezes sem
aviso prévio. Todos os sábados, enquanto pôde, descia ao mercado em companhia
da mulher, e não perdia uma ida ao Circo sempre que estre descia à cidade.
Segundo
conta o seu filho Eugène (5), aquele cujo nascimento apressou a compra da casa,
aos domingos ia quase sempre almoçar a este restaurante que aqui vos mostro,
”L’Auberge de l’Onde”, em Lavaux, a poucos quilómetros de Vevey.
Almoçar
no restaurante de Chaplin e, se possível, na mesa de Chaplin, teria sido, para
mim, um desejo irresistível, não tivesse eu o enorme azar dele estar encerrado
para férias na época de fim do ano, em que por lá passei.
Chaplin
morreu no dia de Natal de 1977, com 88 anos, tendo passado vinte e quatro felizes
anos em Vevey. Durante esse período escreveu uma “Autobiografia”, publicada em
1964, realizou mais dois filmes (“Um Rei em Nova Iorque”, em 1957, e “A
Condessa de Hong Kong”, dez anos depois) viu nascer mais três dos oito filhos
que teve com Oona. Nos últimos anos dedicou-se a compor as músicas que iriam
acompanhar a reedição dos seus velhos filmes mudos.
Deixo-vos
com as últimas palavras que escreveu na sua “Autobiografia”, e também com um
pôr do Sol no Lago Léman, que ele tanto gostava de comtemplar.
“No
meio de tamanha felicidade, sento-me às vezes no nosso terraço ao pôr do Sol, e
comtemplo o vasto relvado verde e o lago ao longe, e para lá do lago as
montanhas tranquilizadoras, e quedo-me sem pensar em nada, a gozar essa
magnífica serenidade”. (6)
1.
Charles
Chaplin, “Autobiografia”, tradução de António Lopes Ribeiro, Editora Ulisseia,
(1965), pág. 460/461/462.
2.
Idem,
pág. 536
3.
Idem,
pág 549
4.
Idem
5.
Esta
como outras informações respeitantes à casa foram retiradas de “Le Manoir de Mon
Père”, Eugène Chaplin, Editions Ramsay, 2007
6.
Vd
(1), pág. 564
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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