A cidade parou ali, parece. A pouca gente que passa é de vizinhos que não perdem tempo a admirar o vazio luminoso que se abre por cima do rio até á linha da Outra Banda.
Os velhos também não (os seus horizontes são breves, a vida já não lhes dá tempo para mais). Estudam as cartas, medem os parceiros, estão em suma, entregues a uma confabulação marginal no cume do mundo que lhes fugiu. A seus pés descem ruas a a pino e travessas em escadaria a caminho do Conde barão, mas eles, que as conhecem desde sempre, já nem sequer dão por elas. Nem por elas nem por o elevador da Bica que anda num vaivém enfadado por entre roupa a secar às janelas, conversações de porta a porta e putos em pé de guerra. È uma carruagem festiva, uma instituição de vizinhos. Às vezes, duma taberna alguém estende uma cerveja ao condutor e o homem leva a garrafa à boca em golos demorados para fazer durar.
Enquanto isso, sobranceiro e em paz distante, o Alto de Santa Catarina é como se não tivesse nada a ver com o que se passa em redor. Céu e Tejo é o que lhe faz companhia; e há um silêncio de província que nos afasta do tempo. Aqui pode-se olhar em solidão para lá do horizonte: quando os lisboetas dizem "ver navios no Alto de Santa Catarina" referem-se a isso mesmo. Estão a assinalar este lugar como o mira-douro duma viagem que se sonha e se vai a nossos olhos. Penso nesta expressão cada vez que vejo os velhos a iludirem a sorte naquele exílio tão perto do céu. Um deles, um dos mais antigos, anunciou que quando morresse queria ir para a outra vida com um crucifixo na mão e um baralho de cartas marcadas no bolso.”
José Cardoiso Pires em “Lisboa Livro de Bordo”, “Publicações Dom Quixote”, Lisboa 1997
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