Talvez partir do princípio que o mundo, se não acabou
já, está em vias de…
Segundo o editor Francisco Vale da Relógio d’Água, uns
artistas-mal-cheirosos fazem chegar a Portugal traduções «feitas» por
Inteligência Artificial:
«Neste momento circulam em Portugal, nas livrarias, em
feiras do livro ou na companhia de alguns jornais, centenas de milhares de
exemplares de clássicos ingleses, franceses, alemães, italianos ou russos
traduzidos com recurso a programas de inteligência artificial (IA), do Google
Translate ao ChatGPT, passando pelo DeepL.
Isto verifica-se sem qualquer indicação, perante o
desconhecimento dos leitores, a indiferença de jornalistas e críticos
literários e o alheamento das associações de tradutores ou da SPA. O processo
está a provocar uma acentuada regressão editorial com a divulgação de traduções
primárias, insípidas, insensíveis a contextos e subtilezas linguísticas, que
tendem a sobrepor-se a textos de enorme qualidade elaborados nas últimas
décadas por Paulo Quintela, Aníbal Fernandes, Maria Teresa Dias Furtado, João Barrento,
Paulo Faria, Sara Seruya, Margarida Periquito, Margarida Vale de Gato, Vasco
Graça Moura, António Pescada, Nina Guerra e Filipe Guerra e António Sousa
Ribeiro, entre outros.
Tudo indica que um dos principais agentes desta
situação seja a Book Cover Editora, que tem publicadas centenas de clássicos de
diversas línguas, o mais das vezes com preços de cerca de 5 euros.
À primeira vista trata-se de uma oferenda aos leitores
— clássicos a preços acessíveis.
Mas na verdade a Book Cover é uma esfinge com alguns
mistérios.
Todos os seus livros, excepto a série de Conan Doyle,
são traduzidos por Lúcia Nogueira, a tradutora mais eficiente do planeta. Só em
2023 aparece na ficha técnica como tradutora de dezenas de obras, entre
elas Guerra e Paz, com as suas mais de mil páginas, e outros romances
volumosos. Nos últimos dois anos e meio terá traduzido cerca de oitenta
clássicos, muitos deles extensos, como Os Miseráveis, E Tudo o Vento
Levou ou Vinte Mil Léguas Submarinas.
Qualquer editor sabe que mesmo tradutores a tempo
inteiro e com larga experiência são incapazes de traduzir mais de 10 a 15
páginas por dia, o que a incansável Lúcia Nogueira parece fazer antes do
pequeno-almoço, seja a partir do inglês, do alemão, do italiano, do cirílico
russo e em breve talvez do mandarim ou grego antigo.
As fichas técnicas da Book Cover não indicam o título
original nem a língua de que se traduz, nem o nome de revisores.
O mundo está cheio de maravilhas e não se pode excluir
a possibilidade de Lúcia Nogueira ser um prodígio, uma supersónica poliglota,
que, mesmo sem traduzir a tempo inteiro — segundo o LinkedIn, trabalhou na
Booktailors e é agora assistente editorial na Porto Editora —, consegue
diariamente passar a um português sofrível várias dezenas de páginas de
clássicos.
Mas é muitíssimo mais provável que se trate de uma
tradutora experimentada em tecnologias de tradução automática, que começaram no
Google Translate, evoluindo para a tradução neuronal do DeepL e, mais
recentemente, o ChatGPT. Lúcia Nogueira deve limitar-se a fazer uma revisão que
corrige alguns dos erros mais graves da tradução automática já mencionados por
alguns dos seus leitores e sem que, em geral, possa cotejar o texto com o
original. Na verdade, ficam numerosas gralhas, erros ortográficos e gramaticais,
confusão de Acordos, termos brasileiros e outras incongruências (ver críticas
de leitores da Book Cover Editora no Google ou comparar páginas das traduções
de António Pescada ou Nina Guerra e Filipe Guerra de Guerra e Paz com
as de Lúcia Nogueira).
Outra hipótese, menos provável por exigir que se
escrevam os textos ao computador, é a de que dirija uma equipa de
tradutores/revisores que usam o inglês, o que deveria ser referido e
individualizado.
Nada há de ilegal nesta actividade. O problema é que
infringe regras editoriais elementares, a começar pela indicação das línguas de
partida e dos programas de IA utilizados ou dos tradutores implicados. Além
disso, a medíocre qualidade dos resultados leva a um retrocesso em relação aos avanços
conseguidos desde os anos 60 do século passado, quando foi possível começar a
traduzir autores ingleses, alemães e russos, não a partir do francês, mas das
línguas originais, tornando acessíveis aos leitores portugueses as subtilezas
dos estilos de Shakespeare, Virginia Woolf, Tolstoi, Goethe ou Dostoiévski.
Claro que o recurso às traduções automáticas permite
realizar economias. Mas estas não são suficientes para explicar os preços da
Book Cover, que recorre também a grandes tiragens, associando-se a alguns
jornais. Estes, que são muitas vezes exigentes com as traduções nas suas
secções literárias, aceitam tudo o que lhes é oferecido nessas parcerias,
feitas em geral através dos seus serviços comerciais e perante a desatenção das
direcções editoriais.
Não se pode excluir que alguns tradutores recorram em
parte a programas de tradução automática para executarem fases do seu trabalho,
o que em qualquer dos casos deverá ser indicado nas fichas técnicas. Mas a
ocultação do seu uso como instrumento principal ou quase exclusivo de tradução,
que transforma os tradutores em meros revisores, não pode ser ignorada. É, por
isso, estranho que críticos de diferentes órgãos de informação não comparem
algumas páginas dos livros de que falam com os textos originais, pelo menos nos
casos em que conhecem a língua de partida.
O próprio ChatGPT, que se afirma capaz de
traduzir Guerra e Paz do russo para português, reconhece a sua
incapacidade para elaborar uma obra literária significativa. Algo de semelhante
se passa com as traduções dos clássicos, que têm sempre aspectos criativos,
estando longe de se resumirem a um jogo de correspondências mais ou menos
lineares entre diferentes línguas.
Afinal, os vários programas, do Google Translate ao
ChatGPT, apenas podem gerar textos que são o agregado de todos os textos que
digerem, indo muitas vezes buscar soluções a tradutores humanos sem que o rasto
dessa utilização ou plágio seja controlado.»
Francisco Vale