Foi por finais de 1966 que, pela vez primeira, fui até à Amadora. Deixava-se a estação do comboio e em tudo à volta, só se viam quintas e mais quintas, e hoje deparamos com aquele triste e horrível mundo de cimento e mais cimento.
Os pais do Armindo tinham um pequeno tasco no nº 299 da Avenida Elias Garcia.
Aos almoços frequentado por operários, aos jantares por gente idosa com estatuto de comensais, tudo numa atmosfera a lembrar os romances do José Rodrigues Migueis. Foi nesse tasco que, por uma noite de ingénuas conspirações para derrubar o regime, comi a mais saborosa e suculenta mão de vaca de jardineira que em minha vida inteira ao dente me chegou. Tudo num sossego, um devagar nos tempos, rematado com um café de saco, um bagacinho caseiro, uma cigarrilha “Alto”.
As conversas com o Armindo eram abrangentes e, amiúde, pelo meio improvisava poemas, conversas soltas, algumas intermináveis, como uma sobre o “Herzog” do Saul Bellow, que nunca se concluiu porque, de repente, me apanhei na recruta em Tavira e nesse lapso o Armindo, para fugir à guerra colonial, deu o salto para França. Apenas um postal ilustrado de Grenoble a dizer que chegara, e depois não mais notícias do Armindo, nem do Zé Ferraz que com ele seguira viagem. Ficou o som das conversas, imagens outras, aquele vocativo que os homens dão ao que não conhecem. Também um abraço constante, nas grandes distâncias e no breve tempo.
Mais ou menos por esses tempos também frequentei a cave-estudio-casa do pintor Artur Bual.
Uma vez, mais o Helder e o poeta e pintor Hugo Beja chegámos pelas duas da tarde e acabámos por perder o último comboio para Lisboa. Quem desfez o galho onde nos enfiámos foi o poeta~pânico Karlos Faria, que foi ter connosco à estação da Amadora onde , sentados, aguardávamos a passagem do primeiro comboio para Lisboa. Cada um dos três com um quadro que o Bual insistira que trouxéssemos. O meu ainda hoje é presença marcante nas paredes aqui da casa.
Uma vez, mais o Helder e o poeta e pintor Hugo Beja chegámos pelas duas da tarde e acabámos por perder o último comboio para Lisboa. Quem desfez o galho onde nos enfiámos foi o poeta~pânico Karlos Faria, que foi ter connosco à estação da Amadora onde , sentados, aguardávamos a passagem do primeiro comboio para Lisboa. Cada um dos três com um quadro que o Bual insistira que trouxéssemos. O meu ainda hoje é presença marcante nas paredes aqui da casa.
Ao lado da cave do Bual, numa rua vulgar da Amadora, havia um tasco onde por diversas vezes o palhinhas foi-se enchendo de tintol. Cada um a pagar o seu, o do Bual foi para o rol.
O Artur Bual morreu em 11 de Janeiro de 1999. Tinha 72 anos.
Autodidacta, gostava de dizer que nunca se preocupara em aprender. Preocupavam-no sim, um bom bacalhau assado, um rosto de mulher, os jogos do Benfica que ouvia numa telefonia. Chamaram-lhe pintor maldito, tal como ao Luiz Pacheco chamaram escritor maldito. Não gostava de críticos e borrifava-se no que diziam. As exposições passavam-lhe ao lado.
“O impulso é que é o grande estado de beleza da interioridade”
Naquela enorme tarde-noite de um Maio de 1967 não conseguimos que o Bual nos desse uma resposta sobre a sua obra. Uma apenas.
- Eh pá não me chateiem a tola!
O Helder, on road para o excelente repórter que haveria de ser em “A Capital”, onde fez de tudo, até crítico gastronómico sob roupagem de Dom Pipas, cheio de ingenuidade, dizia-lhe que era uma pena ele andar a esbanjar tanto talento e o Bual, pegando no copo de tinto, a lançar-lhe um
- E se fosses chatear o c…!
Acabou por sair uma reportagem-entrevista completamente chalada, publicada no “Diário de Lisboa”, mais de metade cortada pela censura, e que está para aí perdida nas caixas que hei-de um dia abrir, amanhã é que vai ser, e será o dia de são nunca à tarde, um qualquer 30 de Fevereiro.
Eu já devia ter avisado que sou um dispersivo, perguntam-me as horas começo por dizer como se fabricam os relógios na Suiça. Vim aqui para colocar um poema do Armindo Miranda sobre a velha Amadora e meti-me por becos e atalhos. e já não atino com o fim a meada meada. Como o paleio se foi estendendo, o poema vai em post à parte, um golpe de asa, um terno, ao mesmo tempo cínico, pequeno retrato de uma Amadora onde um apartamento custava cento e trinta e cinco contos, “pois, pois, J. Pimenta!”, como dizia o anúncio dos “Parodiantes de Lisboa”.
1 comentário:
Mas que grande texto, e ando eu para aqui às voltas com o que escrever sobre a minha Amadora, e tu de enfiada mandas uma obra destas. É curioso, também foi em 1966 que fui pela primeira vez à Amadora, e antes nunca tinha ido a lado nenhum. E é curioso que passei anos a conviver com o Artur Bual, por frequentar o tasco ao pé do seu estúdio-cave, raramente trocámos palavras, mas a sua presença fazia-se notar. Foi na fase em que muita gente conhecida ia ao Beija-mão, Bual era já consagrado, mas a atitude foi sempre a mesma, vi muitas toalhas de papel transformarem-se em obras de arte, que o tasqueiro ia guardando sabe-se lá onde...obrigado por me teres feito lembrar desses tempos.
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