segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

GÉRARD, FOTÓGRAFO


Um belo dia de sol de Inverno, há uns cinco ou seis anos atrás, em Paris, estava eu sentado num restaurante perto da nova Cinemateca Francesa, lá para os lados de Bercy,  a terminar  um almoço tardio, quando vejo entrar, com a imponência do seu ar aristocrático e dos seus quase dois metros de altura, o Gérard Castello Lopes.  Sentou-se não muito longe de mim, pediu uma água e pôs-se a ler alguns documentos que trazia consigo. De tempos a tempos olhava para o relógio, como se se fizesse tarde e estivesse à espera de alguém que não chegava.

Fiquei a admirar à distância aquela bela figura de Homem, de ar a um tempo  digno e nobre, mas bondoso e afável, que já antes havia encontrado nos corredores da Gulbenkian e da Cinemateca, bem como no documentário que o Fernando Lopes lhe havia dedicado e que se chama, precisamente, “Gérard, Fotógrafo”.

À saída, porque trazia o aparelho comigo, enchi-me de coragem e fui cumprimentá-lo, eu que até tenho alguma timidez e não sou muito dessas coisas. Mas apeteceu-me e foi uma coisa natural… Lembrei-me de uma história que ele tinha contado já não sei onde (talvez no tal documentário…): um dia em Paris avistara na rua o seu “Mestre” Henry Cartier Bresson e apressou-se a cumprimentá-lo para lhe dizer o quanto o admirava e o quanto ele havia influenciado a sua vida e a sua obra. Mas o “Mestre” reagiu mal  à abordagem e afastou-se de uma forma brusca e altiva, deixando o pobre Gérard estupefacto e sem palavras.

Por isso lhe comecei por dizer, já de pé e junto à sua mesa, qualquer coisa como isto: “espero que não me leve a mal e não me faça a mim o que Cartier Bresson lhe fez a si, mas gostava de o cumprimentar e de lhe agradecer o que fez pelo Cinema e pela Fotografia no meu país”. Gérard reagiu com surpresa mas pôs de imediato no rosto um sorriso terno e gentil. Acho, até, que ficou algo envergonhado por se estar de repente a ver como uma figura pública num tempo e num lugar onde menos o esperava. Disse-me que estava à espera da mulher e do filho, mas que eu me podia sentar para falarmos um pouco. Agradeci-lhe e respondi-lhe que estava preso e já atrasado com compromissos profissionais, o que até era verdade. Ainda me perguntou se eu era Fotógrafo e eu respondi-lhe que era daqueles que gostava mais de ver do que fazer... Fotógrafo só de fotografias turísticas, em viagem. Ele riu-se e disse-me que não encarasse essas fotografias com um sentido assim tão pejorativo, porque muitas das fotografias de que mais gostava foram feitas exactamente assim, em viagem… Desejei-lhe boa sorte e pedi-lhe desculpa pelo incómodo. E foi a última vez que o vi.

De Gérard admirava muitas coisas e a mais longínqua das quais seria o inesquecível genérico dos “Filmes Castello Lopes” da minha adolescência, negócio de família que havia gerido com o seu irmão. Aliás, a única vez que ouvi Gérard falar em público foi precisamente na abertura do ciclo de homenagem que a Cinemateca dedicou aos “Filmes Castello Lopes”, há uns bons anos atrás. Mas admirava-lhe, sobretudo, as fotografias, e acho que ninguém fotografou as gentes deste país como ele.

Esta fotografia que aqui vos deixou é, para mim, emblemática do portugalzinho do final dos anos 50 inícios de 60. Um país triste e alegre, rigorosamente vigiado…

E que dizer do olhar daquela rapariga de Óbidos sentada à janela…? Que me acompanha por todo o lado….

Mas Gérard tinha um imenso pudor e entendeu que não podia continuar a ferir a intimidade das pessoas fotografando-as sem a sua autorização prévia. Dedicou-se, então, à natureza, às paredes dos edifícios abandonados, aos reflexos na água depois da chuva,  às diversas formas de rochas e rochedos… Que eu saiba,  as únicas figuras humanas que voltou a expor publicamente foram as de seu filho, David.

Li ontem no “Público” que Gérard falecera em Paris, aos 85 anos, com a doença de Alzeimer e apeteceu-me escrever-lhe este texto.

Texto de Luís Miguel Mira

Legenda: "Lisboa 1967", fotografia de Gérard Castello Lopes

6 comentários:

Jack Kerouac disse...

Mas que bela foto a ilustrar um não menos brilhante texto do Luís Mira, cada coisa que escreve, seja um texto elaborado, seja um comentário pontual ou até uma resposta às provocações futebolísticas que alguém insiste em lhe fazer, é pura arte literária. E a propósito de Gerard Castello Lopes, ainda ontem a minha mãe me dizia que ficou triste com a sua morte, pois ele era familiar por adopção e visita habitual da casa dos Freitas Branco, onde a minha mãe trabalhou como "criada de servir", era assim que se chamava, durante alguns anos. Aliás, não sei se o próprio Filhote sabe, mas o Gerard era assim uma espécie de familiar dele, pois era filho adoptivo do Maestro Pedro de Freitas Branco.

Sammy, o paquete disse...

Um texto muito bonito, simplesmente comovedor!

Luís Mira disse...

Eu bem sei que vocés estão eufóricos com a melhor exibição das últimas épocas, mas pelo amor de Deus poupem-me e guardem os elogios para o JJ...!

Um abraço!

Anónimo disse...

Partilho a opinião dos anteriores
comentadores, quanto à excelência
do texto e sempre gostei muito
das fotografias de Gérard.
É triste que no fim da vida se
acabe com uma doença tão terrível.
M.Júlia

Aida disse...

Mesmo com atraso não queria deixar de dizer que gostei muito deste teu texto e não estou nada de acordo com o que dizes. O Abaladas costuma dizer que humildade a mais também é vaidade. O "Glorioso" não era para aqui chamado mas o que serias tu e nós sem estas pequenas provocações.
O segundo ano do "Cais do Olhar" está a começar muito bem.
Beijinhos

Anónimo disse...

Esqueci-me de referir a magia do
apelido Castello Lopes, ligado ao
cinema e a alguns filmes da minha
vida. No meio de uma inqualificável
desorganização, não consigo encontrar um livro que tenho, com
algumas das belas fotografias de
Gérard. Neste momento, bem gostaria
de as rever!
M.Júlia