sábado, 26 de fevereiro de 2011

COMO QUEM NÃO QUER A COISA


Para começar, uma declaração de interesses: se os meus amigos, não têm virtudes ou qualidades, eu invento.

Dito isto compreenderão que não adianta muito eu dizer que o Miguel escreve bem, tem um processo de escrita simples, que se torna aliciante e donde sobressai o seu fino e apurado sentido de humor, que apenas, ligeiramente, se estatela quando o seu anti-benfiquismo vem a talhe de letra. Mas também, como diz a Aida,  os nossos dias não são os mesmos sem as suas provocaçõezinhas do pontapé na bola.

Quando, a um grupo restrito de amigos,  o Miguel, começou a enviar as impressões da sua viagem ao Estados Unidos, que acabariam por dar um feliz e interessante livro, "instigante livro", como lhe chamou Pedro Freitas Branco, aconteceu um dia  cair-lhes uma carta que falava do acidente cardíaco que, por um fim-de-semana louco, ao virar duma esquina, lhe bateu no ombro.

Agora que passaram dois anos sobre o percalço, pedi autorização ao Miguel para publicar ,no “Cais do Olhar”, essa carta.

Pela sua leitura verificarão que é um texto muitíssimo bem esgalhado, em redor de um tema, a que, amiúde, pretendemos, sem qualquer ponta de êxito, fugir ou ignorar.

Sobre a vida somos capazes das melhores palavras, de filosofias de pura e cristalina água, mas sobre a morte é um busílis. E, no entanto, a pessoa preparar-se para a morte deveria ser a grande finalidade da vida.

Caro(a)s Amigo(a)s!

Se eu tivesse partido naquela madrugada de 22 de Fevereiro, iria de "papinho cheio".... Há quem morra com fome, com frio, ao relento, na mais profunda das solidões... Eu teria sido um privilegiado! Vejam só: almoço no “Camané,” entradinhas variadas, sopa de peixe, arroz de lingueirão e um “Don Rodrigo”, tudo regado com um excelente espumante; ao jantar, e a acompanhar a magnífica vitória do Sporting sobre o Benfica, uma riquíssima mariscada em Cabanas, na companhia do meu neto, dos seus pais, da Cristina e de outros amigos. Que melhor morte poderia eu desejar..?
Quando, umas horas depois, me deu a dor, pensava que seria um problema de gases, tal os abusos que tinha feito durante o dia... E ainda me lembro de ter perguntado à enfermeira, no quarto do hotel, se eles não tinham nada para os gases...
Na ambulância, a caminho do hospital, veio-me à memória a cena do "Fountainhead", do King Vidor, em que o velho arquitecto é também transportado ao hospital de  ambulância. Na pequena parte de vidro visível na porta traseira da ambulância ele vê passar, um após outro, os arranha-céus que tinham sido toda a razão da sua vida. Eu vi passar os chaparros de Tavira e arredores, e nunca pensei que pudesse vir a apreciar tão "por dentro" esse belíssimo plano do King Vidor...
Pois foi disto que me lembrei na ambulância, sim senhor...!
Como tantas vezes sucede no Cinema e na Literatura, eu gostaria de poder assumir perante vós  um ar meio  melodramático e dizer: durante aqueles longos minutos, toda a minha Vida passou defronte dos meus olhos... ! Mas é mentira, pois não passou puta de vida nenhuma! A única coisa que passou foi a imagem de um fim de semana estragado, para mim e para as pobres pessoas que me acompanhavam; uma refeição de ostras para o galheiro!; uma ida aos petiscos de Ayamonte que bateu asas...!
Chamem-me inconsciente mas, talvez por a reacção ter sido muito rápida e eu nunca ter chegado a sentir uma dor profunda e insuportável, nunca me senti verdadeiramente em perigo, embora isso pudesse ter acontecido. Nunca imaginei, sequer, a possibilidade de deixar de ver a minha Família e os meus Amigos!
Chegado ao hospital, passei brevemente por um quarto antes de entrar na sala de intervenções onde fiz o Cateterismo. Uma simpática enfermeira, Ana de seu nome, avisou-me que iria ter de me rapar parte dos pelos, para depois se poder colocar os adesivos. Rapou-me o pulso, a perna direita, e também uma boa parte do "genital" (fiquei a saber que, no hospital, é esse o nome técnico da coisa...). Ainda sem saber muito bem se iria ter oportunidade de o voltar a utilizar nas suas múltiplas funcionalidades, confesso que me assustei um pouco, não fosse a enfermeira, nesse seu afã destruidor de pelos, levar-me metade atrás. Mas não! Tudo correu na perfeição e o meu "genital" ficou que nem passarinho pronto a saltar para a frigideira...
Já aqui falei da enfermeira Ana, mas poderia ter falado de muitas mais, tão simpáticas todas elas foram. Percebo agora melhor porque é que muitos doentes se apaixonam pelas suas enfermeiras. Elas são umas Queridas, e mereceram amplamente as caixinhas de chocolates que, à saída, lhes fui levar...!
No dia seguinte ao da intervenção, uma enfermeira, sozinha, conseguiu mudar-me os lençóis e dar-me banho, tudo isto sem eu sair da cama...! Depois de me ter esfregado o corpo todo, passou-me a esponja para a mão e disse-me, com um sorriso cúmplice: "Agora o genital é consigo...". Balelas! Bastar-me-ia ter alegado qualquer incapacidade para mexer o braço, e o "genital" também ficaria por conta dela. E ela faria isso com prazer, porque são esses os "princípios" da sua profissão...
A Felicidade, no hospital, é uma coisa fácil de alcançar. Ter autorização para ir à pia (de cadeira de rodas, é claro...) fazer as necessidades sozinho; poder tomar um duche de verdade no balneário, embora sempre com a enfermeira do outro lado da cortina a dizer vezes sem conta: "Não fique tonto, veja lá se quer ajuda..."; fazer as refeições fora da cama; poder recusar a maça assada, sem ser obrigado a emborcá-la à força...
Em contrapartida, o maior pânico no hospital não são os fios que nos ligam a todas aquelas máquinas, não é o facto de nos virem, de quatro em quatro horas, retirar sangue para análise em enormíssimas seringas, nem sequer a circunstância de uma enfermeira  vir, regularmente e com um sorriso nos lábios, dar-me uma injecção em plena barriga para o sangue não engrossar. Tudo isso é brincadeira...
Terrível, mesmo terrível, é um objecto a que chamam "arrastadeira", destinado a fazer as necessidades sem se levantar o "tutu" da cama...  E a simpática enfermeira bem nos diz (ela deve saber quão difícil é a tarefa...): " Se precisar de ajuda para se limpar, chame-me..." Porra! Quem é que tem coragem para chamar uma enfermeira para uma coisa dessas...?"  Rapar o "genital" ainda vai, agora isso... Resultado: três diarreias de seguida e nem coragem tenho para vos contar todo o espectáculo...!
Os "vizinhos" também não são nenhum problema. Estava muito bem a ver o jogo do Porto com o Atlético de Madrid quando me entra no quarto e se coloca bem defronte da televisão um velhote, vestindo um impecável roupão de lã castanho escuro, com chinelos a condizer. Estende-me a mão, diz que se chama Armando Cabanita e pergunta-me há quanto tempo estou eu no hospital. "Três dias", respondo-lhe. "Pois eu já cá estou há quatro semanas", diz-me ele. E acrescenta: "Tenho uma doença rara (cujos detalhes me explicou sem que eu tenha percebido patavina...) e este tempo todo é só para a preparação, porque a operação, essa tem de ser feita em Lisboa".
Quando o Armando se afastou da televisão, o Porto já tinha conseguido o empate sem que eu soubesse, quando, como e porquê. Mas se alguma mágoa se sentia na voz do Armando, julgo que não era devido à sua "doença rara", mas sim ao facto de ela ter sido diagnosticada tão tardiamente. O Armando imaginava as mordomias que tinha perdido ao longo da vida: palmadinhas nas costas por parte do Presidente da Junta de Freguesia; lugar cativo e na primeira fila nas festas da Casa do Povo; ir na rua e ouvir gritarem-lhe do outro lado do passeio "Atão Ti Armando, meque vai isso...?" e ele, Armando, do outro lado do passeio a tirar o boné da cabeça e a acenar em sinal de reconhecimento...
Mas, por cada Armando, que lá aparece, há também o seu inverso. No dia seguinte a esta cena, estando eu sozinho no meu quarto, entra, com um reluzente fato de treino verde e roxo, aquele que percebi logo ser o meu novo companheiro de quarto. Estende-me a mão, diz-me o nome (que não percebi...), diz-me ao que vem (que ainda percebi menos...), tudo isto com uma genica impressionante num homem que já deveria ter mais de sessenta anos. Despiu-se, vestiu o pijama azul bébé do hospital e estendeu-se na cama, a ler uma revista qualquer que lhe emprestei. Pouco tempo depois dei com ele a chorar que nem um perdido e a ser rapidamente rodeado e "apaparicado" pelas enfermeiras. Quando me fui embora, gritei-lhe um "corra tudo bem!", mas ele nem me respondeu, com a cabeça escondida entre as mãos... No dia seguinte voltei ao hospital para falar com a médica e agradecer pessoalmente às enfermeiras que lá estavam, e, felizmente, já o vi de novo em plena forma...
No último dia a médica perguntou-me se, até aí, havia levado uma vida bem regrada. Eu respondi-lhe que sim, mais ou menos... Mas não deixei de pensar com os "meus botões" que talvez o "erre" do meio esteja a mais, e que a minha vida tenha sido, isso sim, bem "regada"...!
À saída dão-nos uma série de folhetos, que têm a ver com aquilo que eles chamam a "nossa preparação para a vida futura", agora que teremos de passar a encarar bem de frente a triste realidade de sermos, como dizem os franceses, "handicapés". Um deles despertou a minha atenção: chama-se "Sexo e Doença Cardíaca". Ainda fui ver se havia "Vinho Verde e Doença Cardíaca", "Pezinhos de Coentrada e Doença Cardíaca", "Mousse de Chocolate com Chantily e Doença Cardíaca", mas nada...
Não tendo os meus outros prazeres merecido qualquer consideração editorial, dediquei-me, então, ao "Sexo". Este livrinho é profusamente ilustrado, o perfeito "Kamasutra" do doente cardiovascular...! Para além disso, tem um interessantíssimo capítulo de "Perguntas e Respostas", que, muito literariamente, eles substituem por "Mitos e Realidades"... Ora reparem bem neste exemplo:
Mito:
Praticar o sexo após um ataque cardíaco causa enfarte do miocárdio e muitas vezes morte súbita
Realidade:
Isto pode acontecer excepcionalmente, sobretudo quando um membro do casal tem sexo fora do casamento.  (poupo-vos ao resto da resposta...!)
Fiquei logo a saber que o miocárdio entope mais rapidamente com a vizinha do lado, do que com a "Dona de Casa"...Enigmas da ciência...
Mas há mais.... Reparem bem neste mimo: não se diz "se o doente cardiovascular tem sexo fora do casamento". Diz-se "quando um membro do casal"! Ou seja, eu posso andar muito direitinho a mijar no meu penico que, se a "parceira" andar a dar "voltas ao bilhar grande" eu apanho por tabela e a dobrar: não só me nascem uns valentíssimos pares de cornos, como entupo a coronária sem saber ler nem escrever...!
Perguntar-me-ão agora: porque é que isto me aconteceu? Eu sei lá...! Erros meus, má fortuna, amor ardente... E de futuro, nesta tríade, vou passar a ter mais atenção ao capítulo "má fortuna"...
Em termos de "plano de acção" para o futuro, há muita coisa que vou ter de mudar... Disparates desnecessários....Por exemplo, nos jantares do "Grupo Jantarista das Últimas Sextas-Feiras do Mês", em casa do Hugo, vou ter de tomar mais atenção e poupar-me. Em vez de ir sempre a correr pelas escadas acima, feito louco, vou passar a subir no elevador...!
Esta lenga-lenga já vai longa, e eu fi-la de propósito para vos pedir desculpa pelas preocupações que vos dei, para vos agradecer essas mesmas preocupações e para vos garantir que, tão depressa, não se vão ver livres de mim...
Herbert Pagani escreveu que "on peut vivre sans Pain, mais pas sans Amis...". E tem absoluta razão! A Amizade alimenta-nos, dá-nos de beber, ajuda-nos a respirar quando sentimos falta de ar... E foi esse mesmo sentimento que eu vivi na minha cama de hospital, cada vez que recebia um telefonema ou um "sms" da vossa parte...
Obrigado por serem meus,/minhas Amigo(a)s!
Espero estar à altura dessa vossa Amizade!
Um forte Abraço do

Luís Miguel

Legenda: é difícil encontrar uma imagem que ilustre um texto como este. Acontece que quando o li, de imediato me saltaram dois livros: “Um Homem Sorri à Morte Com Meia Carade José Rodrigues Miguéis e “De Profundis, Valsa Lenta” de José Cardoso Pires.
Entendi que a capa do livro de Rodrigues Miguéiss não ficava mal de todo.
O título é roubado a um livro do Eduardo Guerra Carneiro.

3 comentários:

Anónimo disse...

Felizmente uma história que acabou
bem. Saúde para o Luis continuar a
desfrutar a vida, da melhor maneira.
Infelizmente, algumas vezes não
é assim, e nem dá tempo de sorrir
à morte.
M.Júlia

Miguel disse...

Pois é...

Se Deus e Fábio Coentrão não estivessem onde não deveriam estar, talvez eu tivesse a oportunidade de iniciar este breve comentário com uma daquelas intervenções que, pelos vistos e secretamente, tanto alegram os dias do Casal Santos...

Assim, só me restará enviar um beijinho à Maria júlia e agradecer a Sammy o trabalho que ele teve com esta montagem, a qual permitirá a todos perceberem que, tal como ele refere no primeira parágrafo, as minhas supostas e instigantes qualidades não passam, afinal, de mais uma das suas grandes e amistosas invenções. Mas é isso a Amizade!

PS:

Por coincidência (ou talvez não...), passei o último fim-de-semana precisamente no hotel onde tive o tal (suposto...) ataque cardíaco há dois anos atrás. Só não consegui ficar no mesmo quarto porque o sistema informático pifou e não me conseguiram dizer qual tinha sido.

Posso garantir-vos que é uma excelente sensação!

Jack Kerouac disse...

Mais uma bela peça, o que só confirma que o Luís tem realmente o dom da escrita. Felizmente que é uma história com um fim feliz, se não, não teríamos oportunidade de ler esta obra de arte, nem da companhia sempre agradável do autor. É uma arte conseguir transmitir em texto as sensações, não está ao alcance de todos.