quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


No “Diário de Lisboa” de 1 de Abril de 1972, José Saramago  publicou um “Recado para Fonseca e Costa”:

Não vou muitas vezes ao cinema português. Desgostos sucessivos me afastaram de filmes que, por serem portugueses, deveriam falar da vida deste país e, portanto, de mim. Ora, quase sempre, se a minha teimosia e boa fé forçavam a resistência, aquilo que se passava diante dos meus olhos desolados não me dizia respeito, não era comigo. Agora que falo destas coisas, vem-me a vontade de dizer que a maior parte da produção cinematográfica nacional tem características eminentemente lunares: inerte, árida e (perdõe-se-me a ironia fácil) com buracos… Se, contra a opinião de Fonseca e Costa, gosto de “O Recado”, é porque este “tecnicamente imperfeito” filme não é inerte, não é árido e, quanto a buracos, não me lembro. A não ser aquele da parede da casa em ruínas onde Francisco é assassinado, aquele buraco por onde se vê o mar deserto e o céu vazio, enquanto fora dos nossos olhos um corpo sangra sem remédio e morre sem companheiro…
Algumas pessoas dirão que me mostro pouco exigente. Sou exigente. A prova de que o sou está precisamente, rigorosamente no facto de ter gostado do filme. Defeituosos apenas sofrivelmente interpretado, é preciso que haja neste filme algo de muito sério, de muito grave, de muito vital para nós, para poder resistir a esta exigência.
Sei muito bem que desloco do contexto e do sentido, ao citá-las aqui, estas palavras de Fonseca e Costa: “Foi um filme feito com muito medo”. Mas abuso delas decididamente para as modificar um pouco na forma e tudo no significado. Aqui está a minha versão: Foi um filme feito apesar do muito medo”. Mas fez-se. Ora (será preciso repeti-lo?) o que conta é precisamente o que se faz.

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