Um Sonho Americano
Norman Mailer
Tradução: H. Silva Letra
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Contemporânea nº 107
Portugália Editora, Lisboa Setembro de 1968
Colecção Contemporânea nº 107
Portugália Editora, Lisboa Setembro de 1968
Tomámos chá com
biscoitos, numa confeitaria, em silêncio a maior parte do tempo. Ao levar a
chávena aos lábios, em certo momento, notei que a mão me tremia. Cherry também
o percebeu.
- Teve uma noite
agitada – disse ela.
- Não é a noite –
respondi. – É a manhã que me espera.
- Tem medo das
próximas horas?
- Estou sempre com
medo.
Ela não riu, sacudiu
apenas a cabeça.
- Estava com a neura –
disse ela.
- Alguma boa razão?
- Sentia-me com
disposição para o suicídio.
- É uma coisa que
acontece a todas as mulheres bonitas.
- Muito pior que isso.
- Sim.
- Não acha que existe
um momento em que é justo o suicídio?
- Talvez.
- Como se fosse a
última oportunidade?
- Explique-se.
- Já viveu com os
mortos?
Fez a pergunta com o
seu rosto de americana prática.
- Não – volvi – Não vivi,
realmente.
- Bem, vivi sempre com
a mamã e com o papá, enquanto crescia, e eles estavam mortos. Morreram quando
eu tinha quatro anos e cinco meses. Um desastre de automóvel. Fiquei com o meu
irmão e a minha irmã, mais velhos.
- Eram bons?
- Merda, não – disse Cherry
– Eram meio loucos.
Acendeu um cigarro. Os
círculos sob os seus olhos denunciavam cansaço, o verde fazia-se violeta na
beira das pálpebras e, ao dissipar-se nas faces, ia-se convertendo num amarelo
gasto.
- Quando vivemos com
os mortos chegamos a compreender que num certo dia, num certo ano, estão
prontos a receber-nos – disse ela – Tem de ser naquele, pois se não for
poderemos morrer num dia em que ninguém está à espera, e ficar vagando no
espaço. É por isso que, quando chega, o impulso é tão forte. Eu sei. O meu dia
chegou uma vez. Não o aproveitei.
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