terça-feira, 21 de janeiro de 2014

OLHAR AS CAPAS


Um Sonho Americano

Norman Mailer
Tradução: H. Silva Letra
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Contemporânea nº 107
Portugália Editora, Lisboa Setembro de 1968

Tomámos chá com biscoitos, numa confeitaria, em silêncio a maior parte do tempo. Ao levar a chávena aos lábios, em certo momento, notei que a mão me tremia. Cherry também o percebeu.
- Teve uma noite agitada – disse ela.
- Não é a noite – respondi. – É a manhã que me espera.
- Tem medo das próximas horas?
- Estou sempre com medo.
Ela não riu, sacudiu apenas a cabeça.
- Estava com a neura – disse ela.
- Alguma boa razão?
- Sentia-me com disposição para o suicídio.
- É uma coisa que acontece a todas as mulheres bonitas.
- Muito pior que isso.
- Sim.
- Não acha que existe um momento em que é justo o suicídio?
- Talvez.
- Como se fosse a última oportunidade?
- Explique-se.
- Já viveu com os mortos?
Fez a pergunta com o seu rosto de americana prática.
- Não – volvi – Não vivi, realmente.
- Bem, vivi sempre com a mamã e com o papá, enquanto crescia, e eles estavam mortos. Morreram quando eu tinha quatro anos e cinco meses. Um desastre de automóvel. Fiquei com o meu irmão e a minha irmã, mais velhos.
- Eram bons?
- Merda, não – disse Cherry – Eram meio loucos.
Acendeu um cigarro. Os círculos sob os seus olhos denunciavam cansaço, o verde fazia-se violeta na beira das pálpebras e, ao dissipar-se nas faces, ia-se convertendo num amarelo gasto.
- Quando vivemos com os mortos chegamos a compreender que num certo dia, num certo ano, estão prontos a receber-nos – disse ela – Tem de ser naquele, pois se não for poderemos morrer num dia em que ninguém está à espera, e ficar vagando no espaço. É por isso que, quando chega, o impulso é tão forte. Eu sei. O meu dia chegou uma vez. Não o aproveitei.

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