segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

EUSÉBIO DA SILVA FERREIRA, MEU DEUS


Se Eusé­bio mor­reu hoje, como dizem as infa­ti­gá­veis notí­cias, mor­reu hoje o que res­tava dos meus anos 60 e o que res­tava de Por­tu­gal ter sido um império.

E embora mor­rendo hoje, como dizem as indes­men­tí­veis notí­cias, as cores do mito – esse belo negro da sua pele, esse ver­me­lho vivo da sua cami­sola – não dei­xa­rão nunca mor­rer Eusé­bio. E nem é pre­ciso dizer aqui a pala­vra Ben­fica, por­que a pala­vra Eusé­bio e a pala­vra Ben­fica beijam-se, fundem-se, são uma com­bi­na­ção amo­rosa de que a gra­má­tica tem ciúmes.

Eusé­bio era feito da mesma terra ver­me­lha dos heróis. A força de per­nas de um Hér­cu­les, veloz como Ulis­ses, o joe­lho onde Aqui­les tinha o cal­ca­nhar. Há romance, mis­té­rio e aven­tura em toda a sua vida. Vejam como, da cidade colo­nial de Lou­renço Mar­ques o tra­zem para Lisboa.

Numa noite de tró­pi­cos, um jipe leva-o à porta do avião. Clan­des­tino quase. E em Lis­boa escondem-no da bruxa má. Tudo por­que Eusé­bio, per­so­ni­fi­ca­ção da bon­dade, fez o que um filho deve fazer, a von­tade à sua mãe. O clube onde jogava que­ria mandá-lo à expe­ri­ên­cia para outro clube. Mas a mãe, como todas as mães, deci­diu pela von­tade do filho: recu­sar vir à expe­ri­ên­cia por­que, como todos os ver­da­dei­ros humil­des, Eusé­bio sabia o que valia.

E o que valia Eusé­bio? Outros dirão muito melhor do que eu. Eu conto-vos só as minhas per­ple­xi­da­des. Eu nunca con­se­guia saber se era o seu pé esquerdo, se o seu pé direito que chu­tava. Por­que, em boa ver­dade, não era ele que chu­tava. A velo­ci­dade rema­tava por ele. E já estou a men­tir ou a enganar-me, por­que, em boa ver­dade, foi com Eusé­bio que a velo­ci­dade apren­deu a jogar à bola. Num tempo em que os car­ros tinham qua­tro velo­ci­da­des, Eusé­bio já tinha a sexta.

Dei­xem deliciar-me ver­go­nho­sa­mente no vício das minhas recor­da­ções. Estou a vê-lo, em Ams­ter­dão, ali­nhado com Águas, Coluna, Simões, antes da final com o Real Madrid come­çar. Está per­fi­lado, a cara­pi­nha cor­tada quase rente, a cabeça redonda de menino, pre­ci­o­sa­mente dese­nhada e bonita, a pele negra bri­lhante, nobre, afri­cana. E era, menino de Moçam­bi­que, o melhor joga­dor por­tu­guês. E eu tenho muito orgu­lho em que o melhor joga­dor por­tu­guês seja um afri­cano, raio de um ex-império que nem um depu­tado negro con­se­gue ter.

Nesse jogo, mar­cou dois golos, os dois, juram-me, e eu não teria tan­tas cer­te­zas, com o pé direito. Pus­kas, Gento e o semi-deus que era Di Ste­fano caí­ram aos seus pés. Eusé­bio, herói com­pas­sivo, foi ao chão bus­car a cami­sola de Di Ste­fano. Pediu-lha, a esse semi-deus aba­tido. Di Ste­fano deu-lha, con­so­lado por aquele pedido de menino, e Eusé­bio guardou-a, por­que Eusé­bio é o guar­dião de todos os símbolos.

Eusé­bio foi o pri­meiro fute­bo­lista a jus­ti­fi­car os 110 metros de com­pri­mento de um campo de fute­bol. Se não fos­sem já essas as medi­das, o campo teria de ser esti­cado. Eusé­bio comia com ale­gria metros de relva. Eusé­bio era um bicho dos gran­des espa­ços, uma pan­tera que que­ria savana. Foi com ele que o fute­bol des­co­briu que a África existia.

Cor­ria em linha recta ou em elipse, fazendo meias-luas, rápi­das mudan­ças de direc­ção, rein­ven­tando a velo­ci­dade, baixando-a, subindo-a. Percebia-se assim, final­mente, por que razão um campo de fute­bol deve ter 75 metros de lar­gura, uma área de 8250 metros qua­dra­dos. Cor­ria e nas per­nas dele cor­ria a pala­vra Ben­fica. Mas tam­bém a pala­vra Portugal.

Foi em 1966, não dou novi­dade nenhuma a nin­guém. Mas vejam outra vez as cores do mito a pin­tar Eusé­bio. Houve um sor­teio dos núme­ros das cami­so­las. Saiu-lhe o 11, ao peque­nino e mara­vi­lhoso Simões o 13. Simões que­ria jogar com o seu habi­tual 11 e, com a ver­dade, deu a volta a Eusé­bio: “Já viste o que é, se joga­res com o 13 e fores, como vais ser, o melhor mar­ca­dor e o melhor joga­dor do mundo?” E foi, com esse número que devia ser fatí­dico, com esse número da fei­ti­ceira Circe, o melhor mar­ca­dor, o melhor joga­dor, o Melhor. As cores do mito, os núme­ros do mito, escolhem-no, querem-no como filho dilecto.

Vi o segundo golo dele ao Bra­sil num filme exi­bido no cinema Impé­rio, em Luanda. Uma obra de arte gigan­tesca em que potên­cia e explo­são se enla­çam. Um golo que ajo­e­lhou o Bra­sil, esse impé­rio romano do fute­bol. De novo e sem­pre as cores do mito, com esse golo, aos pés ala­dos de Eusé­bio, caía Pelé, uma lança espe­tada no flanco.

No jogo com a Coreia do Norte, Eusé­bio car­re­gou, como Hér­cu­les, o mundo aos ombros. Ainda nem a meio da pri­meira parte íamos e a Coreia, aba­lando a ordem do céu e terra, de mares e ares, ganhava por três a zero. Eusé­bio recons­ti­tuiu minu­ci­o­sa­mente a ordem do mundo, todo o uni­verso. Agar­rou nos des­tro­ços e com per­se­ve­rança jun­tou as par­tes. Cor­reu, dri­blou, foi atin­gido vio­len­ta­mente, mas triun­fou. Qua­tro golos foram os tra­ba­lhos de Eusé­bio nessa tarde de gló­ria que aca­ba­ria, dias depois, nas lágri­mas de Wem­bley, momento mais bonito, mais lírico ou ele­gíaco do que qual­quer vitó­ria. Lágri­mas de Eusé­bio que a cami­sola de Por­tu­gal reco­lhe e esconde. Nenhum outro gesto, outras lágri­mas, pode­rão ser tes­te­mu­nho de mais amor.
Mor­reu hoje Eusé­bio da Silva Fer­reira, meu Deus.


Manuel S. Fonseca em Escrever é Triste

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